Davi puxou uma cadeira para se sentar, eu o acompanhei. Iríamos de avião particular durante o dia, quando o nosso interior não tinha vontade de romper a pele e correr pela floresta.

— Cedo.

— Vamos trabalhar, então.

*****

Música antiga de mil novecentos e setenta até as três primeiras décadas dos anos dois mil tocavam nos alto falantes. O nosso público não curtia nada atual, estando vivos há tanto tempo, ainda não tinham se desapegado do passado. Sendo sincero, de tanto ouvir aquele tipo de repertório, eu também era assim.

Vampiros dançavam livremente, pedindo doses de bebidas misturadas ao sangue doado por livre e espontânea vontade. Nossos garçons e garçonetes eram humanos e sabiam de sua clientela sobrenatural. Muitos sonhavam em se tornar uma delas, mas todos sabiam que o pescoço dos funcionários estava fora do cardápio.

Sentado na área VIP, de onde podia ver o salão, espalhei algumas reportagens que imprimi — jornal impresso foi abolido anos atrás — e tentei encontrar o padrão. Marquei os pontos dos assassinatos no mapa, tentando achar uma forma geométrica ou algo do tipo que os ligasse. Nenhum funcionava bem.

Unhas longas e pintadas de vermelho arranharam a pele exposta pelo colarinho da minha camisa.

— Matteo, Matteo... o que faz aqui escondido? — A vampira colocou o cálice em cima da papelada e puxou minha cadeira para trás sem dificuldade alguma, sentando-se no meu colo e envolvendo a minha nuca com suas mãos. — Estou tão entediada hoje.

Deslizei o indicador por seu decote profundo que ia até o umbigo, expondo a pele alva imaculada.

— Você, entediada? Não consigo imaginar.

Ela fez um som de muxoxo e beijou o meu pescoço, as presas raspando de leve a minha pele sem romper. Muitos vampiros vinham pelas bebidas, mas a maioria gostava de conhecer a única família lobisomem viva. E outras, como Loreta, eram boas para se divertir. Inspirei fundo o aroma de sua excitação quando ela lambeu os lábios vermelhos e fez as presas alongarem, os olhos castanhos se acenderam em um tom iridescente de mel. Jogou os longos cachos para trás, expondo o pescoço — um ponto vulnerável — como sinal de submissão.

A pele ondulou, o lobo adorando a proposta dela. Eu passaria dias em uma selva de pedra, certo? Seria prudente libertar o animal antes de entrar em uma investigação.

— Consegue correr na floresta com esses saltos altos? Não quero uma presa fácil.

Ao invés de responder, ela se levantou e em um piscar de olhos estava na porta de saída do bar.

— Venha me pegar, lobão.

Tomei o meu tempo, queria lhe dar alguma vantagem. Coloquei o material em uma pasta e o entreguei ao meu irmão antes de segui-la. Primeiro, precisaria dar o show que a clientela estava louca para ver. Sabendo o que eu pretendia, Davi mudou o repertório para Born to be wild, do Steppenwolf, a música favorita dos nossos pais. Tendo nascido lobo, era de se esperar que quatro décadas de transformações tivessem me deixado acostumado, porém, abdicar da forma humana, ter os ossos remodelados e mudar para um animal ainda doía.

Era, no entanto, uma dor bem vinda. Aqueles segundos eram um momento de vulnerabilidade, onde estaria mais desprotegido diante de um ataque. Fazer na frente de um grupo de vampiros sempre soou como um desafio. Venham, sanguessugas! Tentem a sorte e vejam o que acontece.

Joguei a cabeça para trás, o rosto transformado em focinho, a garganta reverberando um uivo longo. Dedos retorceram e alongaram virando garras, o pelo branco e preto cobriu a minha pele. Quando criança, minha mãe dizia que eu parecia um husky siberiano, no entanto, a versão lobo adulto se assemelhava mais a um enorme malamute do Alasca, uma raça de cachorro que já era grande, porém, com dentes muito mais proeminentes. Olhos brilhantes de variadas cores me encaravam e o cheiro de vampiro me fez rosnar para a plateia, mas eu tinha uma presa a caçar.

(AMOSTRA) Valknut - o legado do alfaWhere stories live. Discover now