Capítulo 2

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Gostaria de dizer que fiquei aliviada quando me tiraram daquela exposição de deficiências trágica, mas a partir dali me levaram direto para o andar da fisioterapia. Temia demais essa primeira sessão pois ela iria somente amplificar as minhas dificuldades e limitações. Lá em baixo, pôde-se afirmar que havia equipamentos dignos de tortura medieval espalhadas em uma área que representava facilmente metade de um campo de futebol. Olhei para a esteira e lembrei das vezes que reclamava por ter que subir em cima desta, e hoje tudo que queria era me matar de correr até meu pulmão sair para fora. Me recordei das tardes de academia em equipe quando sentia verdadeira raiva de ser a única menina dali, a única que não tinha testosterona para atingir as metas mais facilmente. Como eu queria voltar para aquela Paige inocente com corpo funcional e dizer a ela que aquilo não era raiva, pois ela descobriria da pior maneira o que é se sentir realmente impotente.

Após me instalarem na maca horizontalmente e amarrarem cada parte do meu corpo a esta, basculharam a mesa para que eu tivesse a impressão de ficar em pé. Sabe quando te colocaram naquelas cadeiras de cinema supostamente 4D e te prometeram a sensação de uma nave mergulhando em pleno espaço com gravidade zero e a única coisa que sente é um leve movimento insignificante então essa decepção não é nada comparado com a tentativa dos fisioterapeutas de me deixarem de pé outra vez.

Enfiaram logo após um grande tubo transparente semelhante a um verme em minha boca. Odiei aquilo no começo, mas percebi que isso realmente me ajudava a respirar melhor, e aquela tonteira que pensei que tirava sua força da minha ansiedade passou com um pouco de ventilação. Como deveria segurar o tubo com uma mão durante a fisioterapia respiratória me restava a outra para mexer no celular, mas quando fui pedir para que a enfermeira Layla, a encarregada de ser nossas pernas nesse lugar, que o pegasse da minha maca pessoal, vi aquele esqueleto de novo de cabeça baixa. Ele estava ali para uma avaliação da cicatriz imagino pois não o tiraram da cadeira e nem o deram um verme. Pessoas pensariam que a cicatriz seria problema da enfermaria, porém, como todo o tecido cicatricial limita a movimentação existe um ritual doloroso que fazem quando já não há mais os pontos. O menino tira com dificuldade a camiseta, e é aí que não consigo, nem com o verme, respirar mais. Meninas da minha idade dizem isso antes de terem relações com alguém charmoso que tira a camiseta para impressionar, ou quando estão na praia aproveitando o verão, mas eu o digo pelo choque de ver a ausência de vida no corpo dele. Era branco que nem um cadáver, deveria um dia ter sido aquele europeu charmoso, mas hoje só restou ossos envoltos em músculos fracos. Mas logo quando pensei que já não dava para ficar mais chocada, eu olhei sua cicatriz, era idêntica ao do menino em que os olhos espelharam os meus naquele inferno que chamam de hospital. Pessoas normais encarariam aquela cicatriz no torso dele por um tempo a mais do que é respeitoso, mas já estou tão acostumada que o desespero de confirmar sua identidade orienta meus olhos aos seus. Acho que a transparência da retina em confronto com a opacidade da cor Velha de madeira atrás desta é o melhor portal para a alma. Como nossas histórias são seguramente longe de clichês, me permitirei falar somente uma vez um ditado bem comum nos filmes de romance que assisto para esquecer minha realidade solitária, pois como imãs os nossos olhos se atraíram e não se desgrudaram mais. Senti cada vez que o polegar do fisio remexia suas feridas, cada nódulo removido em vão pois eram que nem monstros imortais que cresciam dentro de nós diariamente, cada lágrima que escorria provavelmente contra sua vontade. Eu conheço bem o momento em que olhamos para a cima para conter a realidade dentro de nós, para que nossas dores fiquem sufocadas assim como nossos arrependimentos que nos levaram até aqui. Ele também me observou quando me tiraram a fonte de ar, e quando, com o choque, me engasguei. A dor avassaladora que me tomou quando tossi foi inesperada. Tudo se repuxou nas minhas costas, senti cada ponto se esticando, e foi aí que meu inferno começou: A infecção. Fui retirada às pressas da maca que me deixava em pé, me colocaram na minha e me levaram para os especialistas em sangue que escorre onde não deveria. Tentei dar um leve tchau para que ele soubesse que não estava querendo ser mal educada, mas a concentração que tive que manter para não gritar ao sentir mais pontos estourando foi grande demais pra poder cumprir com regras de etiquetas. Queria mostrar que isso não havia me abalado mas também não queria traumatizar ainda mais as criancinhas que estavam ali aprendendo a levar um copo à boca ou a se locomoverem com cadeiras automáticas.

No terceiro andar que era majoritariamente deserto com exceção de um único quarto que estava fora dos limites das outras crianças existia uma pequena enfermaria com decorações da Disney. Não me surpreendi quando me viraram abruptamente para verificarem o estrago que eu, mais uma vez, havia causado. Ficaram desesperados com uma possível infecção. Infecção essa que causaria uma provável sépsis. E a partir daí não há mais volta. Foi a minha vez de sentir a rosa com espinhos nas costas. Me lembrei dela no torso do menino sem nome, de como parecia inofensiva, mas o aflorar desta pareceu arrancar cada pedaço restante da minha força. Me prometeram a ausência de dor... me deram mais drogas...

Acordei na cama do meu quarto solitário. Foi ali que tive tempo para observar mais a fundo meu espaço dos próximos meses, diria particular, mas pelo que eu percebi as enfermeiras não são somente nossas pernas mas sim o que nos mantém vivos e minimamente sanos, no caso dos que ainda tem uma consciência. E agora me refiro a você leitor, que deve pensar que a ausência de consciência é resultado da impossibilidade de existência de uma alma, mas lhe digo; são as mais puras, que mesmo presas dentro daqui e do próprio corpo, não deixam de trazer leveza aos sofredores drogados. Percebo agora que o mundo sob a perspectiva horizontal é quase irreconhecível. Olho para fora de canto de olho pois o medo de me mover é grande demais, e a vista é avassaladora em sua infinidade. A cidade estava tão distante, e esta enfatizava a exclusão dos moradores permanentes daqui, quase esquecidos, de novo vejo a minha vantagem: um dia retornarei. Retornarei talvez sana, mas agora ao olhar a vista que antes me deslumbraria, agora só me dá a ideia de voo. Pego-me pensando como um voo mal sucedido me ajudaria nesse momento, mas antes que as ideias da vista me consumam, eu escuto uma tosse.

Tentei levantar a mão para apertar o botão vermelho, para que a pessoa sufocando aqui perto não fique sozinha no desespero, mas debaixo de fios e canos opacos, consegui meramente levantar um dedo. Procurei com o olhar alguma outra alternativa, um feixe de luz de baixo da parede me chamou a atenção, não era parede dura, mas sim uma porta. Uma enfermeira entrou desesperada no meu quarto, olhando freneticamente cada pedacinho do meu corpo, mas ao perceber que somente os meus olhos pareciam perturbados, saiu à procura da origem da tosse. Logo, por debaixo da porta vejo sombras que logo viram passos no corredor e o 'pim' do elevador é a última frase deste capítulo misterioso.

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⏰ Last updated: Sep 26, 2022 ⏰

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ΊριςWhere stories live. Discover now