A viagem

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Lisboa, uma cidade de muitas cores.
Como é possível
Num espaço tão pequeno
Numa pequena capital
Vermos tantos mundos
E tão diferentes.
Para os percebermos
Temos que ver de forma diferente
Usar a nova visão que descobrimos
E ver com os outros sentidos
Ver sinestesicamente.
Olhar para a baixa como um azul e amarelo
Imaginar na 25 de abril, o aproximar da cidade
E ao olhar para baixo,
Ver não a divisão clara entre rio e terra,
Mas a mistura entre as cores
E como um pouco de azul se vê na terra
E vice-versa.
Vemos a mistura,
Quando, no Terreiro do Paço,
Pisamos no leve amarelo
Mas sentimos o azul fresco do rio na pele, e o cheiro azul esverdeado do mesmo
Isto sim é ver,
Ver de verdade,
Ver na tolidade
O mundo à nossa volta.

Subimos a baixa,
E sentimos o azul a desaparecer,
E o amarelo a se manifestar
Com a sua característica intensidade
Ouvimos o barulho
Das conversas estrangeiras,
Dos músicos de rua,
Dos barulhos dos tuk tuks.
Sentimos, no amarelo intenso da baixa,
O que para os de fora é a beleza da cidade
E para outros
A confusão da capital.
Mas quem cá vive
Sabe muito bem
Que Lisboa é muito mais
Às vezes melhor
Outras pior
Mas que é muito mais
Do que apenas duas cores.

Lisboa
A cidade das setes colinas
Que entrelaçam a cidade,
E tornam a mais simples viagem
Num verdadeiro desafio.
Sinto o sangue a ferver
A espuma a ser formada
E, à minha volta,
Desaparece o amarelo,
E chega o vermelho.
A cada subida,
Deixo de cheirar
Deixo de ouvir
De ver e de pensar
Só ando
Ando
E subo
Infinitamente
Passam-se eternidades
E depois de o que para mim foram horas
E horas
E horas de caminhar neste deserto everéstico,
Chego ao topo
(Pelo menos por enquanto)
Ao tranquilizar-me
Olho à minha volta,
E vejo um novo vermelho
Menos intenso do que na súbida
Mais esverdeado
Um vermelho essencialmente português
Sinal de que, finalmente,
Começamos a entrar na verdadeira Lisboa
Naquela que eu, hoje em dia, vivo grande parte da minha vida,
E vim aprender a amar.
Antes de prosseguir viagem, paro para pensar
Naquilo que perdi
E que não voltarei a ver
Nas coisas que perdi na súbida
Então, paro...
E faço o que todos nós sabemos fazer melhor,
Imagino!
Imagino-me completamente relaxado,
No meio do vermelho intenso das súbida
E vejo com o nosso novo olhar..
Sinto a humidade na minha pele
Que tornou o ar fresco da baixa
Num fumo vermelho, que se cola à minha pele
E me impede de respirar.
Sinto todos os meus outros sentidos enclausurados
E pergunto me
Como será viver ali
No vermelho intenso
No constante subir e descer
Perdido no fumo vermelho

E no regresso à viagem
Passo por todo o verde da Lisboa
Todos os pequenos buracos
Que, como pequenos portais,
Nos tiram da imensidão do cimento
Da confusão
Da população
E nos levam ao que foi feito para nós.
A natureza.

Num momento de breve recordação,
Lembro-me da minha vida antiga.
Quando não vivia neste labirinto de cimento.
Rodeado de blocos de pedra que, por alguma razão,
Decidimos chamar de casas...
Como se algo trouxessem de conforto.
E sinto uma nova raiva
De viver tanto tempo assim,
Porque agora,
Lembro-me da minha vida antiga
Do verde
Quando vivia numa perfeita combinação
Do que é natural
E do que foi por nós feito.

O lembrar faz-me tudo menos infeliz.
Sinto a maior das tristezas
Não pelo que perdi
Não pela vida que deixei para trás e a ligação que com ela tinha
Não por me ter esquecido do que era o natural, o mais orgânico ao nosso ser,
Mas por não me lembrar,
E, agora, a nova perseguição de um pensamento,
Que, até hoje, me atormenta onde quer que esteja.
Porque, se disto não me lembrava,
Se desta recordação, mais bela do que a minha vida na cidade alguma vez foi,
Do que mais me terei esquecido.
E passo os dias a imaginar...
O que terei vivido
E se as felicidades
As alegrias
Os amores
As tristezas
Alguma vez voltarão
Ou serão apenas recordações,
Queimadas para sempre,
Quando decidi deixar de saber ver
Deixar de tudo fazer,
E assim
Deixar de lembrar.

Porque ao entrar no verde.
Vejo as minhas mágoas desaparecerem
Vejo a raiva do que perdi
A ficar à porta, e a deixar-me
Um momento
Só para mim
Para sentir a natureza.
E neste tempo
Só me lembro do início de tudo isto
Da mulher vermelha
Da cassete
E reparo no que o imaginar se tornou.
Vejo em minha volta
Tudo o que a minha mente criou
E, desta vez de olhos abertos,
Sinto as texturas
O som
O vento
O cheiro
A água
E agora, com os olhos,

Só vejo o verde,
Porque, para o resto, posso sentir
Posso ouvir,
Posso cheirar,
E, com o maior de todos os sentidos
Posso focar no que é realmente importante
E por isso,
Aqui

Só vejo o verde

Agora, finalmente,
Sinto que sei ver
Mas preciso de ver tudo
Preciso de ver esta cidade
Que tanto me prendeu
Que tanto tirou de mim e me tornou na casca de pessoa que era
Preciso de ver, se no meio disto tudo,
Algo mudou.

Por isso, subo e desço
Subo e desço
E não paro
Até ao miradouro
Nao vejo nada
E, por poucos momentos,
Volto à pessoa que era
E ando
Ando
E ando,
Sem pensar
Sem sentir
Sem cheirar
Até ao miradouro
Nao vejo nada
Senão a vida que tinha.

Ao chegar, olho para Lisboa,
E vejo o caminho que percorri
As cores
Vejo todas as cores
Os azuis
Os amarelos
Os vermelhos
Os verdes
E todas as suas misturas
Como fazem desta cidade
Um mar de aguarelas
Diluidas umas nas noutras
Que fazem desta cidade
Muito mais que duas cores.

Volto a sentir a entidade
A mulher vermelha
Que tanto mudou a minha vida
Sinto-a como se estivesse numa floresta escura
Sem nada ver
Mas sentir mais fortemente que tudo
O olhar
Dos animais
Dos lobos
Da mulher vermelha

E não demoro muito
Para realmente a ver
Sinto uma vontade enorme em tanto lhe perguntar
Quem é
Porque é assim
Quem fez a cassete,
Mas, por muito que a vontade tenha sido
É rapidamente reprimida, com o seu aproximar.
Sem qualquer indício de esforço
Mas rapido como um piscar de olhos.
Encosta-se a mim e pergunta.

'Já sabes ver?'

A resposta é me retirada da boca tão rapidamente,
Que nem tempo tive de a construir
E, rapidamente e por reflexo, digo:

'Vejo como nunca dantes vi, e vejo com perfeita claridade, o presente e o passado.'

Ela, largando um suspiro de satisfação e de pura tranqualidade, chega-se ao meu ouvido e diz:

'Ainda bem, agora que já sabes ver, vais ver o que realmente importa, o que fez de mim quem sou, e o que me guiou a ti.'

Com um tocar da sua mão no meu peito.
Sinto todo o mundo a mudar
E vejo toda a Lisboa,
A perder a sua cor,
E todo o arco íris desta cidade
A viajar pelos ares,
Como nuvens de gás
Que, num espaço de minutos,
Me cercam completamente
E aproximam-se de mim
Muito devagar
Até realmente começarem
O que vieram aqui fazer.

Vejo o azul e o amarelo a colarem-se à minha roupa,
O azul às minhas calças
O amarelo ao meu casaco.
O fumo vermelho, desta vez, tinge todo o meu corpo com um encarnado intenso
E o verde, por fim, infiltra-se nos meus olhos, mudando a sua cor.

Agora,
Vejo toda a cidade a preto e branco
Sem cor
Sem vida
Mas vejo, pela primeira vez
O que mais importa
E o que, até hoje, nunca consegui voltar as ver

As pessoas

O mundo completamente cheio de pessoas
Todas elas pretas e brancas
Que andam num andar que me é incrivelmente familiar
Num andar que foi meu
Durante anos
E anos.
E sei agora o que tenho que fazer,
Pois, ao andar pela cidade
Reparo naqueles que ainda têm cor
Que ainda têm esperança

E agora
Finalmente
Após tantos anos de vida
Sem rumo
Sem propósito
Encontro num rapaz
Mais ou menos da minha idade
O que via em mim.
Que andava como eu
Respirava como eu
E sentia o que sentia todos os dias
Nada

Por isso,
Tiro do bolso a cassete
E preparo-me para lhe mostrar
O que senti
O que vivi
O que cheirei
O que ouvi
E como,
Passados tantos anos de vida

Aprendi a ver.

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⏰ Last updated: Aug 10, 2022 ⏰

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