Matt me encara, como se dissesse vai ajudar ou não? Pego uma caixa e vou para a cômoda. Retiro alguns livros de ficção e os arrumo na caixa, depois encontro cartas de baralho que me fazem sorrir. Lembro de ter ficado até tarde no alojamento dele, junto de Alana e Luís, jogando pôquer e apostando a sobremesa. Eu sempre ganhava.

Sua expressão nunca muda, por isso sempre ganha — argumentava Mateus, decepcionado por ter que dar sua sobremesa por um mês.

Fui para a agência aos quinze anos, quando contei a Jorge que queria fazer informática na faculdade. Ele ficou empolgado e disse que poderia dar um jeito e me fazer chefe de uma área na Central, o que não precisou ser feito, consegui o cargo sem ajuda de terceiros e estou lá desde então.

Juntos as cartas e as ponho dentro de um livro, já que não encontro nenhum elástico para prendê-las juntas.

Isso mesmo, enterre suas memórias em uma caixa.

Solto o livro ao escutar a frase, e ele desliza pelo chão até parar no centro do quarto. Era a voz de Mateus, com aquele tom de ironia que tanto ouvi quando ele falava com Caio, até posso visualizar seu sorrisinho de canto.

— Tobias! — Mamãe repreende apanhando o livro e devolvendo a caixa. Ela vê meu olhar e seja lá o que enxerga nos meus olhos faz sua expressão mudar para preocupação. — Sei que é difícil, mas li na internet que essa é uma das fases do luto, superar. Precisamos nos desapegar…

Paro de lhe dar ouvidos quando a voz se manifesta mais uma vez.

Ela me superou tão rápido.

O tom de ironia dá lugar à melancolia e o vejo, como um espectro instável, no canto do quarto, sentado no chão abraçando os joelhos dobrados e encarando nossa mãe, que continua a falar. Uma lágrima cai.

— ...vai nos ajudar. Tobias! — Ela se aproxima e toca minha bochecha. Fecho os olhos e, quando volto a abrir, o espectro sumiu. — O que foi?

Cogito lhe contar o que acabara de acontecer, mas ela me acharia um louco, ou apenas um garoto de vinte anos abatido pela perda do irmão.

— Achei ter visto uma caranguejeira — minto. Ela acredita.

— Ah, se  ver de novo pode matar, tenho pavor desses bichos. — Ela faz uma cara de nojo e volta as roupas.

Olho novamente para o canto, mas ele continua vazio. Deslizo até sentar no chão e tento me concentrar na simples tarefa de esvaziar as gavetas e encher as caixas. Consigo encontrar um ritmo e a sensação de estar sendo observado aparece e cresce gradativamente. Olho para a porta ainda aberta, não há nada lá; a janela, apenas uma chuva fina; para Matt, embolado e dormindo; debaixo da cama, escuro e empoeirado.

Na última gaveta, encontro um caderno familiar, de capa de couro preto. Pego. Folheio, encontrando desenhos nada maus de monstros e informações sobre eles. Encontro uma página dedicada a Pantera, com perguntas ao lado: cientista do AN? Tinha um filho? Por que temos essa conexão? A última pontuada com cinco interrogações. Passo para a página seguinte e o primeiro nome que vejo me faz fechar o caderno com força e o separar das outras coisas na cama. Pode ser algo que Ágata queira ler.

Ao ver seu nome na caligrafia de meu irmão, lembro que ela deve estar com Jorge e, só por precaução, ou melhor, uma desculpa para abandonar o trabalho, pego o plib para mandar uma mensagem, lembrando um segundo depois que ela não tem um. Frustrado, desisto.

Pego a caixa cheia e levo para fora do quarto, enquanto minha mãe se prepara para ir para a próxima sacola.

— Deixe na sala — instrui.

Pouso a caixa no sofá e Matt vem atrás, abanando o rabo achando que vamos passear. Passo a mão em sua cabeça e sinto um arrepio percorrer todo o meu corpo. O cachorro me encara confuso, como se também tivesse sentido.

Vão se livrar das minhas coisas? Tão cedo?

Viro devagar, assustado, e vejo o espectro de novo, agora em pé, observando a caixa. Mateus. Ele tem uma forma disforme, como um bug de um jogo, quase posso ver os pixels que o formam. Ele se vira ao sentir meu olhar e me encara. Dou um passo para trás.

— Mãe! — grito.

Matt late para mim, o espectro some, simplesmente deixa de existir, como se fosse um holograma e alguém tivesse desligado. Mamãe aparece correndo e se aproxima.

— O quê?

Quero gritar, chorar, correr para longe… Não é real, não é real.

— Não. ..não podemos...fazer isso — balbucio.

— Isso o quê? — indaga, me abraçando de lado.

— Nos livrar das coisas dele. — Não sei de onde isso veio, mas é plausível, é crível, melhor do que acho que vi o fantasma do meu irmão.

— Querido! — sussurra e beija minha bochecha. — Desculpe, não deve ser fácil para você.

Deixo ela me abraçar por completo e deito a cabeça em seu ombro, enquanto ela passa as mãos por minhas costas. Meus olhos ardem e continuo encarando o ponto onde vi o espectro pela última vez, e Matt alterna um olhar penetrante entre o lugar e eu. Você viu? Quero perguntar, mas acho que falar com o cachorro vai ser o que faltava para chegar ao diagnóstico de ei, Tobias, você não está bem.



Sim, teremos alguns capítulos especiais narrados por outros personagens!

A pergunta que não quer calar é:Tobias está ficando louco?

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