Reminiscência

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Não saíra do evento ao qual compareceu cinco anos atrás, ele havia percebido.
Perdeu as contas de quantas vezes percorreu pelo mesmo trajeto no salão tentando reconhecer algum rosto dentre os gatos pingados espalhados em meio à iluminação fraca. Em nenhum momento tocou nos aperitivos postos à mesa por já conseguir sentir o gosto pouco atrativo ao paladar.
Bebericou o champanhe barato que lhe foi oferecido, sentindo o líquido arranhar sua garganta. Reteve uma careta. Olhou em volta novamente. Nenhuma face conhecida ou interessante o suficiente para passar o tempo.
Ele se lembrava bem, nada havia mudado.
Contudo, em compensação, naquela vez não precisou substituir nenhum fotógrafo.
Percebeu a familiaridade da melodia abafada que ressoava pela caixa de som lhe veio depois de muito tempo de concentração, trazendo consigo o mesmo ar nostálgico de uma seleção musical não ao todo modificada e fotografias mentais de uma noite distante, desbotadas conforme os anos, porém ao mesmo tempo vívidas demais para serem esquecidas em um álbum qualquer.
O que o havia levado a comparecer naquele encontro de ex-alunos anos após a última vez em que se prontificou a ir em um? Nem ele sabia ao certo. Uma forte inquietude o dominou desde o instante em que recebeu o convite, lhe implorando para ir, lhe dizendo que deveria estar lá.
Apertou ainda mais a taça quase vazia. Seus pés batucavam levemente o chão em uma tentativa de acompanhar o ritmo descompassado que ressoava por cada canto do local. Olhou em volta mais uma vez para encontrar alguma variante presente naquele cenário tão familiar.
E então a viu.
O movimento em seus arredores era em câmera lenta, mas não vinha com a força que o desalinhou por completo há cinco anos. O coração já não mais descompassava. Não havia nenhum arrepio, nenhuma cambalhota no estômago. A nostalgia de vê-la como se fosse a primeira vez, no entanto, continuava ali.
Mas a imagem dela não veio em tons de uma foto antiga, como um dia lhe disseram que haveria de acontecer. Ela transbordava novas cores, uma fotografia em movimento em intensidades vívidas. Trocara aquele vestido rodado de tom avermelhado por um branco, com flores das mais diferentes formas e tonalidades distribuídas de uma maneira desordenada, mas que ainda assim, de algum modo, fazia sentido. O sorriso, aquele tímido e discreto que não tardou muito a conquistá-lo quando viu pela primeira vez, ainda era o mesmo.
Ela se aproximava sem muita pressa. Ele não deixou de sorrir. As memórias do que um dia foram lhe invadiam com uma intensidade menor do que costumavam visitar na época em que tiveram que seguir em frente sozinhos. As noites em que se lamentava ao pegar-se pensando em cada uma delas pareciam momentos ainda mais longínquos.
Ela nunca fora as variáveis em preto e branco ou em sépia, ele sabia. Em todas as cadeias de eventos, desde o primeiro contato até aquele momento, o rapaz sabia que cada dia com ela não seriam ao todos esquecidos em um álbum qualquer dentro de uma gaveta ou estante pouco lembrada.
Um instante de silêncio, segundos incontáveis de hesitação. Uma troca de olhares que escondiam todas as histórias não contadas. Eram apenas eles, de uma maneira não tão complicada quanto antes, mas sustentando o peso de todos os receios do agora.
Ela soltou um "oi" quase tímido. Sua voz soava mais firme, porém tão melódica quanto as primeiras palavras que lhe dirigiu ao pedir uma foto dela com os amigos no instante em que se conheceram. Ele já não mais tropeçava nas palavras e respondia cada uma das perguntas que a moça fazia sobre como estava e o que fez durante todo esses anos com a mesma certeza de que suas mãos não tremeriam se tivesse de tirar uma foto dela novamente naquele momento.
Eles reconheceram a melodia que começou a invadir o salão nas primeiras notas. Os sorrisos se ampliaram ainda mais. Tal qual nos velhos tempos, o rapaz estendeu a mão, com o mesmo ar cortêz de quando colocou a música para tocar em alto e bom som em seu carro e a chamou para dançar no estacionamento, dias depois do primeiro encontro. Ela aceitou-a sem hesitar.
Os primeiros passos eram regrados de dilemas e histórias silenciosas, mas os motivos não eram os mesmos, não carregavam a mesma oscilação de quando achavam serem para sempre. Eram eles em uma outra primeira vez, mas sem a imersão de um mundo só deles, sem estarem a céu aberto antes de serem atingidos pela chuva.
Ela o contou sobre sua vida depois da separação. Sobre suas viagens e cada um dos lugares que parou. Sobre cada um de seus registros como uma peregrina que tentava ganhar a vida com a fotografia. Os olhos dela carregavam o mesmo brilho de anos atrás. Uma constelação viva, talvez muito mais viva do que conseguia se lembrar. A mulher, antes tão jovem para entender o mundo, continuava apaixonada pelo que fazia.
Ele nunca deixou suas raízes, ela sabia. O homem que um dia a amou lhe confidenciou sobre a estabilidade que havia conseguido como fotógrafo local e que, apesar de ter chegado a ir a outras cidades a trabalho, nunca deixou de sentir que seu verdadeiro lar era ali, onde nascera e crescera e nunca se viu desejando por outra coisa.
Foi assim que se lembraram da última vez que se viram, do primeiro ponto final.
— Me odiou por muito tempo? — Ela tentou manter a compostura, mas o tom de sua voz a traiu.
Não tinham como não sentir as cicatrizes daquela noite. Nas promessas que não poderiam ser cumpridas, nas súplicas, nas lágrimas derramadas, nas rachaduras que um dia pensaram que seriam eternas.
Ele ponderou durante alguns instantes, os olhos dele escapando dos dela.
— Sim. Por um tempo acreditei que odiei você mais do que qualquer coisa, mas passei a me odiar muito mais por implorar para você ficar sabendo que não poderia.
— Acho que nós dois fomos egoístas, no final das contas. — Ela o lançou um sorriso fraco.
— Mas não tinha outro final para nós.
— Certamente.
Alguns segundos de silêncio se seguiram. Não sabiam ao certo em que parte aquela música se sintonizava, se é que já era a mesma. As palavras eram trocadas sem nenhum tipo de preocupação com o tempo que corria ao seu redor. Poderiam ter estado ali por horas, mas a impressão era de que se passaram apenas minutos.
— Você se arrepende? — questionou ele, por fim. — De ter se entregado demais.
— Nem por um segundo. — A moça não hesitou. — Gosto de pensar que faz parte da experiência. E você? Se arrepende?
— Se tivesse me perguntado isso até dois anos atrás, a resposta seria sim. Mas hoje sei que eu precisava disso.
Nós precisávamos.
Ele assentiu. Os passos se encaminhavam para uma sincronia ainda mais lenta, quase estática. Em ambos era deixado o peso que há anos haviam se esquecido de que carregavam. Uma leveza maior que qualquer brisa poderia carregar.
Por um momento, tão breve quanto um instante decisivo, ela se contentou em fitá-lo e gravar cada uma das marcas que o tempo deixou nele. Não havia muitas, considerando que eram apenas dois jovens adultos quando se conheceram. Dois jovens longe dos vinte, mas ao mesmo tempo distante dos trinta. Dois adultos que compartilharam entre si suas melhores histórias durante três meses, acreditando na improbabilidade do para sempre.
Ela o olhou com aquele ar de cautela, como se tivesse receio de perguntar algo pelo qual ansiava muito saber.
Foi quando ele lembrou das últimas palavras dela na noite da separação. As palavras que ele conhecia tão bem quanto as funcionalidades de uma câmera. As mesmas palavras que o assombraram durante os dois primeiros anos.
— Não — confidenciou ele. Sem hesitações, sem divagar demais. — Ainda não encontrei ninguém que não me fizesse pedir para ficar.
A expressão dela era um misto de surpresa e complacência.
— Espero que não precise esperar muito.
Ele abriu um sorriso fraco. Um sorriso como quem diz que não nutria grandes esperanças, mas que ainda assim não havia desistido.
Não perceberam o momento em que pararam, nem mesmo por quanto tempo permaneceram sustentando o olhar um no outro. As últimas palavras eram silenciosas, e, de algum modo, ambos conseguiam entender: era ali que tudo acabava.
Não se fazia necessário fazer mais perguntas, muito menos se ela estava feliz. Ele sabia que ela vivia e se desfrutava de seus melhores anos.
Em um último gesto, ela depositou um beijo na bochecha dele e, com mais uma daquelas expressões capazes de iluminar todo o salão e colorir o mundo, disse:
— Adeus.

Reminiscência (Versão Expandida)Where stories live. Discover now