Parte I

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Despertei cansada em meio a um vácuo escuro e frio, preenchido apenas por vozes cantando ao longe. À medida que minha vista se acostumava, a melodia foi se aproximando e trazendo consigo uma fila enorme de pontinhos luminosos. Consegui enxergar formas se movendo: uma procissão. Retomei o equilíbrio ao mesmo tempo em que uma voz me chamou:

― Vem moça ― uma menininha pegou minha mão ― vai começar a missa.

Confusa, mas sem muita escolha, caminhei com ela junto à multidão, velas como nossa única fonte de luz em meio ao breu. Percebi que todos estavam encapuzados e ninguém olhava para trás, tal como minha companheirinha. Algum tempo depois, chegamos a uma igreja estranha e imponente, com uma arquitetura tão fantasmagórica, quanto convidativa. O cheiro forte de incenso por pouco não fechou minha garganta e segui com a criança ao meu lado até um dos bancos.

O padre, encapuzado assim como as demais figuras à minha volta, incensava o altar com seu turíbulo¹. Com um badalar de sinos vindo de algum lugar da igreja, parou para reverenciar a cruz e, então, pediu para que todos ficassem de pé.

Levantei-me contra minha vontade, como se alguém me controlasse.

― Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo.

― Para sempre seja louvado ― respondemos todos, mecanicamente.

― Irmãos e irmãs, tiremos os capuzes ― foi o único comando que não me afetou.

Não entendia o porquê de toda aquela gente usar a mesma vestimenta numa missa, mas desejei não ter seguido aquela procissão com o que vi em seguida.

Um a um, os capuzes retirados revelavam crânios em diferentes estados de conservação. Pra variar, a garotinha ao meu lado e suas profundas cavidades oculares me encaravam curiosas. Não só isso: a mãozinha de criança que me conduzira até ali agora era só ossos.

Com um grito, larguei a mão esquelética e acabei esbarrando na pessoa ― esqueleto? ― ao meu lado. De repente, todas aquelas cavidades sombrias e sorrisos sem carne voltaram-se para mim.

Corri até a saída com o coração quase saindo pela boca.

A poucos passos da porta, meu corpo pareceu ficar mais pesado conforme aquela multidão entoava o canto que havia nos levado à cerimônia. Lutei para tentar alcançar a maçaneta, mas algo invisível começou a me puxar para trás. O canto foi se intensificando e, quanto mais as notas invadiam minha mente, mais desesperada e incapacitada de fugir eu ficava.

― Me deixem ir, pelo amor de Deus! ― supliquei, chorando.

Caí ao chão, sendo arrastada pela força invisível. Agarrava desesperadamente toda e qualquer fresta no assoalho que podia para conter a coisa que me puxava, meus dedos doendo e ficando cada vez mais finos e fracos. Logo foi a vez dos braços, falhando em me ajudar. No que vi minha pele dar lugar a ossos, dei um grito tão intenso quanto a cantoria ao meu redor.

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¹ Turíbulo: objeto de metal utilizado para queimar incenso em missas, geralmente manuseado por sacerdotes e coroinhas.

É Hora da Missa [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora