Tudo que deixei de Dizer

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A vista da minúscula janela do apartamento parece ganhar vida em noites como essa.
Aquelas noites.
As folhas das escassas árvores visíveis se movimentam num hipnotizante bailar, criando vida ao redor das entediantes construções. A lua, com toda sua majestade, se destaca entre as estrelas que parecem tentar roubar seu brilho, sem sucesso.
São essas noites. Em que a nostalgia bate. A saudade aperta. As lembranças despertam, enfatizando os momentos felizes, como se existissem sós, como se nada mais importasse.

São nesses dias que o coração se acalenta, revisitando memórias empoeiradas. Como no dia em que ele me levou até o aquário, meu lugar favorito no mundo, e lá me pediu em namoro. Simples e discreto, como me ouvira falar tantas vezes.
Ou no dia em que adormeci em seu peito, sentindo suas mãos acariciando meu cabelo e seu coração batendo sob meu ouvido. Ou mesmo quando observamos as estrelas, deitados no capô do carro, conversando sobre tudo e mais um pouco.

Sendo sincera... Eu odeio essas noites. Em que a mistura de álcool e nostalgia e saudade me fazem pegar o celular e digitar tudo que não falei quando tive oportunidade.
Normalmente a sobriedade irrompe, me chacoalhando pelos ombros de volta para a realidade. Mas, nessa bendita noite, não fui a única a revisitar o passado.

O toque irritante do celular ecoa pela pequena sala. No visor, o nome que eu menos esperava. O dele.
Deixo tocar mais algumas vezes, encarando a tela sem reação. Devo atender? Devo deixar o álcool e a saudade falarem mais alto?
Sim.
Algo dentro de mim responde. Se é a razão ou o álcool, não sei.

— Alô? — Minha voz sai fraca, trêmula.
Silêncio. É ele que me traz de volta à razão.
— Não achei que fosse atender. — Sua familiar voz rouca e falhada me impede de apertar o botão vermelho.
Por um momento, meu coração parece sair pela boca. Minha mente me leva numa viajem por seus belos e macios lábios, desenterra a sensação de seu toque, relembra a fragrância que exala de seu corpo. 
— Ainda está aí? Vai me dar um gelo como antigamente? — Como um sussurro, sua voz acaricia meus ouvidos, mas também me arrasta de volta à realidade.
— Só não sei o que dizer. A última coisa que esperava era uma ligação sua.
— Eu sei... Já faz dois anos desde que...
— Desde que sua desconfiança sem fundamentos nos fez terminar? Era o que ia dizer? — Digo, a mágoa quase palpável em minha voz.
— Era mesmo sem fundamentos? Você e aquele cara não estavam abraçados, prestes a se beijar? Ou eu estava com problemas de visão? — Seu tom de voz aumenta. Não o vejo, mas sei que está encostado em algum canto, a mão percorrendo os bagunçados fios escuros, os olhos fechados. Uma cena que já vi vezes demais.
— Sim, nós estávamos abraçados, mas não, não estávamos prestes a nos beijar. Você ao menos me deu tempo para explicar o que estava acontecendo. E nem mesmo percebeu que o cara que me abraçava estava chorando desolado e eu estava somente o consolando. Ele era meu primo, Tom! Meu primo! Então sim, sua desconfiança era totalmente sem fundamentos, sempre foi. Você simplesmente surtou e deu um escândalo...
— Você sabe o que eu estava passando. O estresse com o grande projeto que poderia mudar a minha vida, minha mãe doente... Eu estava sufocando, me afundando. E vocês pareciam próximos demais, íntimos demais. Eu sequer sabia que você tinha um primo que morava na cidade. Como eu poderia adivinhar?
— É aí que tá... você não deveria adivinhar. Você deveria me ouvir, me deixar contar o que estava acontecendo antes de sair gritando... — Sinto minha voz embargada, segurando firme as lágrimas que imploram para sair. — Olha, você não devia ter ligado. Eu não devia ter atendido. Você nunca vai mudar e esse pequeno assunto, que poderia ter sido resolvido facilmente, vai ser o seu maior arrependimento. Nós poderíamos ter sido muito mais. Mas tem coisas que simplesmente não são pra ser. Simples assim. — Não esperei por uma resposta, não aguentaria ouvir o que ele tem a dizer, ouvir suas desculpas para a total falta de compreensão e paciência comigo.

Deixo meu corpo cair de encontro ao tapete felpudo que ele odiava e jogo o celular no sofá ao meu lado.
Me parece mais que claro que a voz que me respondeu não foi a da razão.
Me encolho, abraçando os joelhos, e deixo tudo sair. São lágrimas que guardei durante exatos vinte e seis meses,  dezoito dias e cinco horas. Vinte e seis longos meses. Fingindo ser forte. Fingindo ter superado. Fingindo que não o amo mais.
Fingindo.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jul 11, 2022 ⏰

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