4° Frame| Detalhes

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Caetano pegou na segunda marioneta de Gilda, a Princesa, e inspecionou o tom de pele do corpo e das máscaras faciais de que ela dispunha. Depois de uma análise cuidada, o gigante concluiu que o pintor tinha feito um bom trabalho e que a personagem não só tinha uma pele uniforme em todas as feições que lhe tinham sido disponibilizadas, como a sua compleição traduzia bem o seu estado debilitado.

Assentindo em aprovação para o técnico à sua frente, que suava em bica à espera de uma resposta, Caetano devolveu-lhe a marioneta, para que este a pudesse restituir ao cenário onde era necessária. O homem guardou a figura na mala de transporte em conjunto com as máscaras faciais e saiu do atelier em passo apressado. Caetano deu-lhe uns minutos antes o seguir. Uma vez que não tinha nenhuma tarefa urgente, ia fazer uma pausa e verificar o andamento dos trabalhos.

O armazém onde estavam instalados tinha diferentes áreas de cenários. Aqueles que eram mais utilizados durante o filme, como o interior do quarto de Gilda ou o jardim exterior do castelo, raramente tinham um minuto de silêncio. Havia conversas, havia obturadores, havia disparos de câmaras fotográficas, havia o ir e vir do pessoal. Porém, aqueles cenários menos utilizados permitiam-lhe apreciar com calma a beleza do detalhe necessário para enriquecer um filme de stop-motion. Como artista plástico, partia-lhe o coração que as audiências só dispusessem de poucos segundos para absorver a complexidade dos cenários que envolvem as marionetas e que tanto tempo e esforço custam a produzir. Porém, poucos segundos de filme eram melhores que segundo nenhum.

Os seus pés levaram-no mais longe, para a zona dos escritórios, das folhas coladas nas paredes e dos quadros de ideias rabiscados. Durante o trajeto, não foi preciso tomar atenção ao caminho, uma vez que todos se desviam dele antes que tivesse tempo de o fazer.

— Continuam todos pouco à vontade contigo, não é verdade? — perguntou uma voz quando Caetano parou em frente de um ecrã que recapitulava alguns segundos de filme, primeiro de um modo fluído, depois separando cada uma das 12 frames que compunham cada segundo.

O homem não precisava de se voltar para saber que era a Andreia. Mesmo que não tivesse decorado o seu timbre da primeira vez que a ouvira, tinha gravitado à sua volta vezes suficientes nos últimos meses para a reconhecer.

Ele olhou-a num relance que pareceu suficiente para Andreia lhe ler os pensamentos.

— Eu sei que sou a exceção à regra, mas gosto de acreditar que consigo ver as pessoas escondidas por detrás das reputações e das máscaras. Ou então sou apenas ingénua — riu.

Caetano deliciou-se com o som e a mulher ao seu lado voltou-se de costas para o ecrã.

— Continuam às turras?

O homem seguiu o seu olhar, encontrando Bernardo a discutir alguma secção do filme com a guionista.

Hm.

— Metade desta equipa era capaz de se abrir contigo se ele não te tratasse como se tivesses a peste. Se bem que, verdade seja dita, as coisas melhoraram muito entre vocês nestes últimos meses. — Ela voltou-se para ele. — O vosso desentendimento teve alguma coisa que ver com o acidente do Bernardo?

O mais alto olhou-a de repente, espantado por não ser o único a saber daquela informação.

— Afinal sempre foi um acidente — murmurou ela, agravando a confusão de Caetano. — Ele nunca falou do assunto comigo, mas o meu tio ficou com uma cicatriz parecida quando teve o acidente dele. Apenas assumi — esclareceu, encolhendo os ombros.

O coração dele vacilou com aquelas palavras. Andreia poderia parecer uma despassarada para as pessoas à sua volta, mas a sua atenção ao detalhe era tão aguçada que a morena podia chegar à verdade com meia dúzia de indícios ou manter com ele uma conversa apenas com as suas respostas não verbais. E isso fascinava Caetano, porque ele nunca antes vira nada igual.

— Não foi isso. Diferenças de personalidades. De pontos de vista.

Ela pareceu chocada por uns instantes.

— Com que então ele fala! Pode não parecer, mas eu não gosto o suficiente da minha voz para poder continuar a falar sozinha por horas a fio.

A sua voz vinha carregada de brincadeira, contrastando com a seriedade das palavras que Caetano não conseguiu conter.

— Eu gosto da tua voz.

Ela parou e olhou-o. Depois, cruzando as mãos atrás das costas como uma criança, sorriu.

— Eu sabia. És mesmo um cachorrinho na pele do grande e violento lobo mau.

Andreia afastou-se, deixando Caetano petrificado. O seu cérebro estava demasiado ocupado a gravar na sua memória todos os detalhes daqueles gestos, daquele sorriso, daquelas palavras.

Aquela era a sua verdade mais secreta, que poucos na sua vida se tinham dado ao trabalho de descobrir, especialmente em tão pouco tempo. Ainda que ele não pudesse esperar outra coisa daquela pequena mulher, a surpresa consumiu-o, radiando pelo seu peito até ser substituída por outro sentimento mais doce e quente. Caetano não se atrevia a dar-lhe nome, mas estava familiarizado com ele.

Já tinha amado antes.

Porém, ele sabia que desta vez era diferente. Este amor era mais rápido e certeiro.

Quase como se fosse obra do destino.

850 palavras

Amendoeiras em flor ✔Where stories live. Discover now