1° Frame | Antestreia

112 15 62
                                    

O hall de entrada dos auditórios zumbia com o murmúrio das conversas e com o quieto trepidar dos aparelhos de ar condicionado. Faltavam vinte e cinco minutos para a antestreia do filme que tinha levado cinco anos e meio a produzir e os homens e mulheres por detrás desse feito enchiam lentamente o espaço que conduzia à sala onde tudo seria revelado pela primeira vez.

Num canto, perto da escadaria que conduzia ao exterior do edifício, um homem tentava controlar a respiração dentro da sua camisa apertada, numa tentativa de diminuir o seu desconforto. Quem por ele passava não dispensava mais do que um aceno mudo ou um cumprimento curto, por pura cortesia. Ele pouco ou nada oferecia em resposta. Era do seu feitio não retribuir, mesmo que se sentisse à vontade para fazê-lo.

Saltos altos bateram de novo nos degraus de mármore e ele rodou a cabeça, deixando de olhar a multidão sobre a carpete vermelha para observar a recém-chegada. Se fosse um homem de sorrisos, os cantos dos seus lábios teriam iniciado o seu movimento em arco para exteriorizar o contentamento que estava a sentir. Porém, não o era. Só quem o conhecesse bem conseguiria distinguir a felicidade que lhe tingiu os olhos negros quando as suas feições permaneceram petrificadas na mesma expressão de sempre.

Era ela. Estava aqui.

A sua musa acabava de entrar no foyer do auditório onde em breve se sentariam, levando-o a perder a aposta que fizera consigo próprio. Se queria continuar a ser um homem de palavra, tinha de agir. E depressa, que já não tinham muito tempo.

Ignorando o desconforto da vestimenta de gala que lhe era tão incaracterística, ele avançou a passos largos, parando junto da morena de vestido verde comprido e costas nuas manchadas.

— Andreia — disse, forçando as cordas vocais a atingir um volume que se sobrepusesse ao das conversas que se desenrolavam à sua frente.

O pequeno grupo apanhou um susto coletivo com a intervenção inesperada. Cabeças viraram na sua direção e pescoços foram arqueados para que as caras dos seus colegas de trabalho pudessem descobrir a sua, a mais de um metro e oitenta do chão.

Sete pares de olhos quiseram encontrar os seus, mas ele só tinha atenção para os verdes mesmo à sua frente, que brilharam em reconhecimento depois de o ver.

— Preciso de falar contigo. Por favor.

Ele estendeu a mão clara num gesto seco, irritado por ter de falar tanto e tão alto para se fazer entender. A morena, por seu turno, desculpou-se aos presentes que os olhavam com apreensão e tomou a mão que lhe era estendida, deixando que os dedos grandes e calejados do homem escondessem os seus.

Caminharam até ao fundo do espaço e dobraram a esquina, após a qual ele abriu a primeira porta à esquerda sem dizer uma palavra. Ela entrou à sua frente na sala vazia e ele acendeu as luzes antes de adentrar o espaço e fechar a porta, isolando-os do mundo.

Ela girou sobre os calcanhares, agitando o cabelo liso, os brincos compridos e o vestido que acabava milímetros acima do chão. Ele retirou o casaco do fato que mantivera aberto até então e colocou-o nas costas da cadeira perto da entrada daquela sala de reuniões. A camisa continuava a sufocá-lo, mas a ausência de outra camada de roupa ajudava a regular a respiração já de si entrecortada.

— Como eu temia — disse Andreia, quebrando o silêncio. O homem aproximou-se dela, perguntando com o erguer de uma sobrancelha o significado das suas palavras. — Havia uma boa razão para estes sapatos estarem esquecidos no fundo do armário. São um número abaixo do meu — esclareceu.

Ela atirou a cabeça para trás numa gargalhada e ele deixou-a a rir-se sozinha, continuando a aproximar-se. Quando ficou perto o suficiente, o homem colocou as mãos na cintura de Andreia e levantou-a para a sentar na mesa atrás de si, perscrutando o semblante da mulher mais pequena em busca das suas reações.

Andreia terminou o ataque de riso e seguiu de perto e em silêncio todos os movimentos do gigante à sua frente, absorvendo os detalhes e os seus significados.

A sua pele arrepiou quando as mãos calejadas percorreram os seus gémeos suavemente em direção aos tornozelos, para a libertar da prisão dos seus sapatos, primeiro do lado esquerdo, depois do direito. Os seus lábios afastaram-se para verbalizar o seu agradecimento, mas deixaram escapar um gemido no seu lugar quando os dedos das mãos do homem se enterraram na planta dos seus pés, massajando os músculos doridos.

A mulher fechou os olhos, soltando um murmúrio prazeroso e reclinando a cabeça para trás até sentir as pontas do cabelo que lhe dava pelos ombros no fundo das costas através da abertura do vestido. Andreia teria mantido esta posição se o homem não lhe tivesse beijado uma mancha sem melanina no peito do pé, mordiscando a sua pele com uma força considerável, como se exigisse a sua atenção.

Em resposta ao gesto repentino, a mulher endireitou-se e tentou recolher o pé. Porém, não só não se conseguiu libertar do toque do homem ajoelhado no chão à sua frente, como acabou por ter as suas esferas de musgo cativas das que albergavam as profundezas do oceano.

Aqueles olhos, apesar de escuros, fascinavam-na agora mais do que nunca. Não era preciso que o homem dissesse alguma coisa para ela ver a devoção que lhe era dirigida a ser derramada da sua vista como lágrimas. Não era preciso sentir as carícias e os toques eletrizantes que ele deixava na sua pele exposta ao se levantar para reparar no fascínio que ele sentia por ela. Não era preciso que ele se aproximasse e fizesse um trilho de beijos lentos desde o seu peito visível pelo decote até aos seus lábios finos para ela ler naqueles olhos todo o amor e toda a paixão que aquele homem desejava derramar sobre si.

Ele, admirado e temido pela sua austeridade e pela sua expressão imutável, podia ser lido na perfeição através dos seus olhos, qual livro aberto.

— Já sabes a resposta à pergunta que te fiz? — arquejou Andreia, puxando o rosto dele para o seu com uma mão e entrelaçando os seus dedos com a outra.

O homem estremeceu ao sentir o frio da aliança que ela tinha no dedo em contacto com a sua pele quente. Andreia raramente a usava, mas ele sentia que conhecia o objeto quase tão bem como a conhecia a ela.

— Eu... — Os lábios dela cobriram os seus novamente, como se o desafiasse, através daquele jogo sensual, a continuar a frase que tinha iniciado. Ele, com muito custo, empurrou-a gentilmente para trás. — Eu...

— Caetano!

O homem sacudiu a cabeça suavemente ao ser arrancado à força da nuvem que lhe toldava a mente. Olhando em volta, este apercebeu-se de que continuava parado no mesmo sítio perto das escadas, a encarar a multidão que escoava do foyer para a porta aberta do auditório. A alguns passos de distância, Andreia terminara a conversa que ele sonhara ter interrompido e dirigia-se, de braço dado com um homem tão moreno quanto ela, para o interior da sala.

Sentindo toques sobre a manga do seu casaco, o olhar de Caetano caiu para o seu lado, encontrando Bernardo.

— O filme está quase a começar. Vamos?

Um suspiro e um encolher de ombros foram a resposta que Caetano deu ao homem mais baixo antes de o seguir para o auditório para assistir à antestreia de Amendoeiras em flor.

1234 palavras

Amendoeiras em flor ✔Onde as histórias ganham vida. Descobre agora