Deturpada

Água

DETURPADA. Adj. Desfigurada; viciada; estragada; corrompida. de. tur. pa. da

  Alegra se sente isso e um monte de outras coisas. Alegra se sente, por algum motivo, distorcida, perversa e cruel. Algumas vezes Alegra realmente se sente como o veneno do mundo. Como um problema. Ela se sente podre. Perdida. Pungente.

  Ela sabe o que se passa em sua mente, dos seus desejos obscuros e tendências questionáveis. Alegra se sente estranha em sua própria pele e sente nojo daquilo que o mundo vê quando olha para ela.

  É por isso que ela não gosta de espelhos, eles revelam a verdade da alma e a alma de Alegra é suja. E sua aparência física a deixa desconfortável. Quando se olha no espelho, Alegra vê uma mulher de vinte e poucos anos, com ombros que estão sempre curvados para baixo, assim como sua cabeça insegura e seus olhos cansados.

  Ela tem longos cabelos loiros, da cor de um sol doente, presos atrás da cabeça e jogados pelas costas em um caminho dourado ressecado. Seus olhos são pretos, nublados por pensamentos intrusivos, sem nunca se focarem em um ponto especifico. Existem muitos ossos proeminentes em sua pele, curvas de costelas e pontas da coluna que se sobressaem sob a carne fina e pálida de quem nunca tem tempo de fazer uma refeição completa. O queixo de Alegra é pontudo, suas bochechas são finas e seus olhos são fundos. Ela deixa seu corpo desaparecer sob camadas de algodão, escondendo do mundo o tamanho pequeno de seu sutiã e o incômodo que sente quando se olha no espelho.

  Acho que ficou claro que sim, ela se odeia. Alegra odeia sua mente perturbada e odeia seu corpo desajeitado.

   Tudo isso é engraçado porquê, se você perguntar a qualquer um que trabalha com Alegra, eles dirão coisas como:

— Alegra é... Como posso descrever a Alegra? — Lucas, seu melhor amigo e pesquisador chefe da empresa Check, hesitaria no início, sempre buscando as palavras certas: — Ela é a pessoa mais doce e gentil que conheço, procure em todo prédio e você não vai encontrar alguém tão amigável quanto Alegra Canero, somos grandes amigos, inclusive, eu sou o Lucas, as pessoas por aqui me chama de... Lucas.

— Alegra? — seu chefe, Alencar, indaga. — Alegra? A fofinha que anda por aí sempre de cabeça baixa? — solta uma risada divertida. — Eu amo essa mulher! Uma coisinha encantadora, mas não tão encantadora quanto o Esdras, vocês já viram aquela bunda? — volta a rir, dessa vez com um sorriso carinhoso nos lábios. — Fica entre nós, hein?

— Ela é prestativa — define Carol, a analista financeira da Check. — Eu aprecio quem faz favores para mim, ao contrário do resto desse buraco, as pessoas aqui são umas merdas.

— Eu não diria que ela atraí muita atenção sabe? Ela é... Como é mesmo a palavra? Meio apagada, quer dizer, ela é bonita, mas falta um pouco de sexy appeal, sabem do que eu tô falando, né? — Bela, designer de produtos, sorri de forma conspiratória. — Eu não, eu tenho sexy appeal para dar e vender, vocês precisam ver os comentários nas minhas redes sociais.

— A Alegra sem sal? — Esdras, um dos melhores desenhistas da Check, quase engasga. — Não somos íntimos nem nada, eu acho que ela quer muito ser minha amiga e por isso fica me perseguindo pelo escritório, é meio triste — seu cenho se franze ao pensar em Alegra. — Para falar a verdade, todo mundo aqui é um pouco obcecado por mim, o que eu posso fazer? As pessoas me amam.

  Para as pessoas Alegra Canero é positiva, favorável e dócil. Ela é a amiga que está lá para estender um ombro e a colega de trabalho que está pronta para salvar o dia.

  Alegra é a pessoa que cede seu lugar no elevador para Carol, abre mão do seu horário de almoço para ajudar o Esdras no escritório e distribui mil elogios ao seu chefe Alencar. Apesar disso, ela nunca foi eleita funcionária do mês, ainda espera por uma promoção do seu cargo de "funcionária sensível" ou por um bolo de frutas no final do ano.