Capítulo único - Há um homem aqui

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Eu estava com ela quando não devia. Eu sabia que a lua viria aquela noite, a maldita dama que me acompanhava e me induzia a mudar. Não se importava se eu estava com minha amada nos braços, compartilhando com ela um sono sereno e profundo. Quando sua luz banhou o quarto, arrastando-se pelo chão de madeira e chegando a cama onde dormíamos, já era tarde demais. Era sempre assim: não havia para onde correr, a lua sempre me alcançava, me atravessava, e me transformava. Só que Ana nunca tinha visto isso.

Me levantei em um sobressalto, assustando-a. Me afastei da luz, batendo as costas na parede, a pele ardendo pela pancada e os olhos esbugalhados em pavor, um grito na garganta que não sairia. Era sempre assim: o último grito sempre se transformava no primeiro uivo. Ana se sentou na cama, assustada com meu repente.

- O que...?

- Saia do quarto! – alertei-a, na esperança de que ela me ouvisse e simplesmente fosse embora. Mas como é tolo o amor: ela se levantou e caminhou até mim, na intenção de me ajudar. Desviei de seu toque, arqueando meu corpo quando senti a transformação queimar.

- Querido, o que houve?!

Eu tentei falar, mas palavras não saiam mais de minha boca. Vi, e certamente ela também viu, meu corpo crescendo e cada membro se esticando e estalando no processo. Era grotesco: a pele humana que dava lugar a uma camada de pelos grossos, a mandíbula que praticamente se quebrava para caber mais dentes e presas, os olhos completamente amarelos, orelhas pontudas e patas enormes. Meus movimentos se tornaram mais rápidos e eu precisava de mais espaço. Talvez todo o espaço do mundo para evitar tragédias...

Era doloroso, muito doloroso, arrancando ar dos meus pulmões e grunhidos de meu interior. Quebrei coisas pelo caminho, enquanto me contorcia tentando fugir daquilo. Gritei, chorei, me senti a beira da morte. Eu já experimentara aquela sensação várias vezes, mas sempre parecia a primeira. A pior parte, entretanto, era perder o entendimento pleno das coisas. Um véu era colocado sobre a parte pensante de meu ser, escondendo meu raciocínio de mim mesmo, me deixando a mercê do que aquela besta quisesse. E eu sabia o que ela iria querer depois...

Minha única esperança era Ana se assustar o suficiente para sair correndo e gritando dali. Eu esperava que ela o fizesse, já que era horrenda a figura que crescia e se formava a sua frente. Olhei para ela uma última vez, esperando que ela fosse embora. Sua imagem apavorada nunca vai sair de minha memória... "Vá embora!", pensei. Amantes podem ler pensamentos um do outro? Podem se comunicar pelo olhar? Ela ainda podia me enxergar e ouvir por cada poro do meu corpo que eu implorava para que ela fosse embora?

O véu começou a cair, cobrindo minha vista e meus sentidos. Pisquei os olhos várias vezes, a imagem dela, em sua camisola branca e com os longos cabelos avermelhados se tornando um borrão. "Não se aproxime, Ana!", foi a última coisa que me lembro de pensar. "Por Deus, não se aproxime..."

...

Depois da tormenta, a calmaria. O beijo do sol era suficiente para me trazer de volta e, pelo menos durante alguns segundos, tudo ficava muito calmo. Depois, era comum gritos invadirem meus ouvidos, me obrigando a levantar e correr. Porém, daquela vez, o silêncio durou tempo demais...

Abri os olhos e pisquei para me acostumar a claridade. Quando foquei o ambiente onde estava, me lembrei do que acontecerá e meu coração afundou no peito.

Tudo estava quebrado. Cortinas, lençóis e travesseiros foram rasgados, e algumas penas ainda caiam em uma dança suave. Só haviam restos da estante e do guarda-roupa que antes estavam ali, lascas de madeiras espalhadas por toda parte e algumas dolorosamente fincadas na minha pele. Longos e profundos arranhões se desenhavam nas paredes e, de alguma forma, o lustre que ficava no centro do teto fora parar no chão, seus cristais espalhados por todo quarto.

Varri o ambiente com os olhos, a procura dela. "Ela saiu do quarto. Ela não está aqui. Ela está bem.", eu tentava me convencer, acreditando que Ana me abandonara para se salvar. Mas, novamente, como é tolo o amor...

Ana ficara no quarto. Não sei se falou com a fera, se tentou acalmá-la como ela costumava fazer comigo quando eu estava nervoso ou aflito. Sua voz suave sempre me acalmava e ela sempre me garantiu que o maior problema do mundo poderia ser resolvido com uma boa xícara de chá. Ela certamente tentou algo... Ou não. Podia ter ficado quieta em um canto também, rezando para todos os deuses que conhecia, e o outro eu não se importaria de interromper uma prece...

Pousei os olhos nela, deitada no chão, de costas para mim. Eu não precisava me aproximar para saber o que acontecera, não precisava ver o vermelho em sua camisola branca para saber o que eu fizera. O silêncio que tomara o quarto partia dela; seu corpo nem vacilava com uma respiração sequer.

Fiquei parado, mal respirando também, observando-a. O tempo passou e o sol banhou o quarto, alcançando-a e envolvendo seu corpo com sua luz dourada. Era sempre assim, não era mesmo? O que a lua esfriava, ele aquecia. No que ela me transformava, ele negava e trazia minha humanidade de volta.

Mas, sinceramente, para que? Para ver Ana morta? Para saber que eu matara? Não sabia dizer quem era pior...

Lágrimas silenciosas rolaram por meu rosto quando eu me aproximei. Esperei o sol se afastar, deitando-a em meus braços, encostando sua cabeça em meu peito como eu sabia que ela gostava e me tentei me convencer que ela só dormia. Um sono profundo depois de um dia agitado. Ela merecia isso.

Levei-a até cama, arrumando os fios de seu cabelo, pousando as mãos em seu tronco. A luz de fim de tarde já banhava o quarto; eu passara um dia todo parado, observando-a dormir. Era isso, só isso que acontecera.

Planejei deixar o quarto em seguida, não querendo me transformar ali de novo. Mas não antes de lhe beijar e deixar o resto de minha humanidade com ela, já que não havia mais sentido leva-la comigo.

Parei um instante na porta, lágrimas secas em minhas bochechas enquanto eu a observava. Se eu pudesse, lhe daria um sopro de vida. Mas que vida se pode esperar de um monstro?

Há um homem aquiDonde viven las historias. Descúbrelo ahora