Talvez, mais umas palavras de reclamação de Nicole e eu pare o carro no acostamento e mande tudo para o raio que parta! Poderíamos ter vindo mais tarde! Dormido um pouco mais! Não ter saído de casa como loucos em plena madrugada!

- Aquela que te pegou no flagra com a irmã dela? Por que não admite o pé na bunda que levou? - Ela sorri lembrando-se de quando fui flagrado na maior intimidade pelas duas e o resultado foi o fim do relacionamento que teria tudo para dar certo.

Afinal, quem em sã consciência namora um cara que tem uma irmã maluca que tira fotos dele com a namorada na cama e ameaça publicar na Internet? Detalhe. Não rolou nada! Apenas umas carícias mais ousadas, pois quem tem uma Nicole em sua vida, está fadado a morrer solteiro e virgem!

- Eu não levei um pé na bunda! - Gritei, lembro-me da vergonha que me fez passar quando contou essa fofoca para a cidade inteira. A garota em questão era filha da dona Judite, mulher carola que queria meu coro esfolado em praça pública. - Você e aquela idiota é que são...

- CUIDADO!!! - Interrompeu com um grito assustador apontando na direção da estrada.

Pisei no freio de imediato, segurei firme no volante e ouvi os pneus cantarem alto no asfalto na escuridão da noite. Mas, não contive o impacto com o que quer que Nicole viu à nossa frente. O solavanco nas rodas provou que passei por cima de algo. Mas, o quê? Pelo retrovisor, vejo um pequeno corpo inerte deitado no asfalto. Imagino que pelas dimensões, talvez, seja um gato.

Tenciono sair de mansinho, pelo visto não resta mais nada a se fazer pelo pobre animal, mas Nicole entra em desespero.

- Miguel! Olha o que você fez! - Bate com força no meu braço e desce apavorada do carro para conferir o estado do animal.

- Volta aqui, Nicole! É perigoso! - gritei tentando fazer desistir dessa ideia maluca. Se acontecer algo de ruim com ela, minha mãe vai me esfolar vivo!

Ela não obedece, pelo retrovisor lateral já vejo que está aos prantos ajoelhada ao lado do corpo inerte, que provavelmente não tem mais vida. Não resta outra saída. Desço devagar e tento ver como remediar a situação.

O frio da madrugada me causa uns calafrios na pele como se tudo isso que aconteceu fosse algo sinistro promovido pela ideia maluca da festa de "aclamação ao diabo" que o povo havia julgado abominável e nos culpado por isso.

- Que idiotice! Não é por que é véspera de Halloween que coisas macabras e demoníacas vão acontecer...- um grito em meio a vegetação me para no caminho quase congelando meu sangue. - É só uma coruja, Miguel! Nada de anormal para o local!

Olho em volta e aquela vegetação que a brisa balança suavemente parece me dizer algo sinistro. Alguns galhos quebrando, fazem que os estalos pareçam uma clemência de socorro. Umas folhas voando em direção ao asfalto um silêncio mortal de vida humana, mas uma algazarra inaudível do sobrenatural. Se estou com medo? Pânico talvez seja uma expressão mais plausível.

- Deve ser o sono! - Minto pra mim mesmo enchendo o peito de falsa coragem e retorno a caminhar até minha irmã.

Era um gato preto que tinha sido atropelado, e ele sangrava pelo nariz. Observo o animal com as mãos no bolso pensando no que fazer com ele. É um singelo filete rubro escuro, mas acredito que esconda um estrago ainda maior internamente. O maldito ainda respira. Está sofrendo e pelo estado do corpo, talvez a única solução seja sacrificá-lo.

Vejo a minha irmã ao seu lado em lágrimas, alisando sua cabeça e mentindo ao pobre bichano, dizendo que vai ficar tudo bem. Mas, não vai. Se deixarmos ele nessa situação, vai morrer lenta e dolorosamente. Prefiro acabar de vez com sua dor. Uma morte rápida, não posso garantir que seja indolor, mas que pelo menos lhe dará paz de espírito.

Quase sinto uma mão gelada roçar no meu rosto, e por um momento, fecho os olhos me arrepiando com medo que seja o anjo da morte ali ao meu lado esperando a alma do bichano. Tento ignorar. O sono prega peças. Deve ser isso. Sono. Cansaço. Raiva por ter deixado Nicole me convencer dessa tolice toda de festa!

Vou até o acostamento, pego uma enorme pedra e volto decidido a terminar com o sofrimento do bichano. Mas, Nicole levanta do seu lado, me pega pelo colarinho da camisa e sacode meu corpo indignada com a atitude que pensei em tomar.

- Ficou maluco! O que pensa em fazer? Temos que socorrer o coitado, não... - as palavras não saem da boca dela. As lágrimas descem em torrentes e posso sentir a dor em seus olhos pelo animal agonizante. - Por favor, Miguel! - De tanto me sacudir a pedra que segurava já com certa dificuldade, por ironia, cai no meu pé e dou um grito de dor pulando num pé só.

- Ficou doida, Nicole! - voltei mancando ao lado do corpo do gato.

Poderia jurar que vi um sorriso de satisfação nos lábios do felino com o que me aconteceu. Inspirei o ar frio da noite junto com a dor e tentei engolir a vergonha da ação.

- Bem feito, Miguel!

Ela me chuta a canela com força e raiva misturadas e exige que tome providências para socorrer o bichano. Reviro os olhos em protesto, mas sei que é inútil discutir isso com uma defensora assídua dos animais.

Fui até a mala do carro, peguei uma manta que tem lá e voltei para enrolar o corpo do pobre animal. Não tive culpa do que lhe aconteceu! Se Nicole não desviasse a minha atenção, ele ainda estaria saudável! Sei que até a cidade vai sofrer um bocado aos pés dela. Nem vai sobreviver e ainda pagaria alguém para jogá-lo fora.

Ajoelho-me ao seu lado e quando estou bem próximo dele, sinto um leve cheiro doce e gostoso no ar. Parece até ser um perfume de mulher. É algo que me seduz, trás paz, mas ao mesmo tempo remete à perigo. O inalo tentando gravá-lo em meus sentidos. A fragrância parecia ser de rosas, mesmo nem tendo noção nenhuma sobre perfumes, era delas que lembrava enquanto o registrava em meu subconsciente.

Enfim, com toda delicadeza exigida por Nicole, tento pegá-lo numa posição mais confortável possível, tentando evitar provocar mais dor naquele corpo sequelado. Porém...

O gato levanta num salto como se nada tivesse acontecido com ele, tenta me arranhar junto a um grunhido assustador e foge para a mata! Para mim, questão resolvida. Para ela...

- Nicole! Nicole! Por favor, garota! Volta aqui, já! - meus berros com ela são ignorados.

Nicole levanta quase num mesmo salto que ele e sai em disparada no seu encalço. Entra como uma maluca mata dentro e num piscar de olhos... Desaparece!

Por um instante, penso que assim que ela souber como é a floresta à noite, volte correndo. Os bichos gritando lá dentro, as sombras, a escuridão e toda sorte de perigos possam a afugentar. Droga! Ela pode pode se perder! Cair e se machucar! E eu aqui, congelando de pavor? Sim. O medo parece me impedir de seguir na mesma direção.

Mas, o tempo passa. E isso não acontece. Ela não volta. Não tem medo do lugar ou...

Ouço um grito alto. Não tenho certeza se é mais uma coruja, um demônio ou Nicole. E, sem saída, mesmo com os nervos à flor da pele, pelos perigos que possam estar à espreita por ali, vou atrás dela...

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Olá, diz aí quem tem medo de andar na floresta à noite? Sozinho ainda?

Será que o gatinho está bem?

E Nicole?

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SERENA (Degustação)Where stories live. Discover now