Capítulo 1

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Quando eu comecei a desenhar, desenhar de verdade, isso lá pelos sete ou oito anos de idade, eu era livre. Desenhava o que vinha à cabeça: estrelas cadentes mergulhando no mar e cachorrinhos voadores com tatuagens de coração na barriga.

À medida que fui crescendo, me afastei de mim e me aproximei de todo mundo. Assim, como ninguém desenha filhotes alados tatuados, troquei meus rabiscos coloridos e felizes por retas meticulosamente traçadas.

Não sei se posso dizer que a arquitetura é a minha paixão, mas, verdade seja dita, eu sei fazer o meu trabalho muito bem. E terminar a última alteração naquele projeto tão detalhado me fez querer celebrar.

E eu preciso de uma celebração minha. Já nem sei há quanto tempo não tiro férias. Agora, parando para pensar, talvez esteja trabalhando direto desde que comecei a namorar o Téo.

Pensar no Téo é trazer à lembrança um misto de saudade e amargura. Saudade do tempo em que nos desvendávamos sedentos um do outro. Amargura pela constatação de que esse tempo passou. Sei que ainda reluto em internalizar a amargura, e por isso sigo me agarrando às migalhas de bons momentos que eventualmente temos.

Hoje é sexta-feira e, ao contrário da maior parte dos trabalhadores do país, dificilmente o Téo vai estar desocupado à noite. Ele é cirurgião torácico e escolheu justamente a sexta para fazer as cirurgias eletivas. Seu argumento é nobre, ele diz que deseja o bem estar dos pacientes, que, no pós-operatório, podem ter a companhia de seus entes queridos com mais facilidade no final de semana. Então, sinto-me mal por protestar, já que sou a única desprestigiada no arranjo.

Ainda assim, resolvo ligar para tentar convencê-lo de que a vida dele, assim como a de cada um de seus pacientes, é importante:

- Alô, Téo?

- Lili! Acabei de almoçar, eu tenho um paciente para evoluir agora, está tudo bem?

- Sim, eu imaginei que você estivesse ocupado, não vou demorar, só quero te avisar que estou indo para Toquinho ainda hoje, devo ficar pelo menos até domingo por causa da festa.

- Da festa?

- A festa de comemoração das bodas de diamante de vovó Olga e vovô Aurélio - digo impaciente.

- Ah, sim! Me perdoe, eu havia esquecido! - ele soa realmente arrependido.

- Você também esqueceu que não vai poder ir? - pergunto com um tom de ironia e fico tentando entender como alguém pode ser tão competente e aplicado no trabalho, fazendo cirurgias delicadíssimas e, ao mesmo tempo, incapaz de guardar informações tão simples - Respiro fundo e continuo:

- Sabe, Téo, eu andei pensando, e resolvi pedir ao Mendes alguns dias das minhas férias do ano passado para ficar na praia durante a próxima semana, quando todos já tiverem voltado da festa... O que você acha de ir me encontrar no domingo ou na segunda-feira?

- Poxa, Olívia, eu sinto muito, mas não tenho como me afastar, assim, de uma hora para outra... - ele se desculpa.

- Está tudo bem - digo levemente contrariada - eu já imaginava que você não pudesse ir. A gente se vê quando eu voltar - digo em tom frio.

- Eu te amo, Lili! Tenha cuidado na estrada e ligue para mim quando chegar lá.

- Eu terei, não se preocupe!

Fico me perguntando por que ainda me dou ao trabalho de ligar para ele e crio expectativas a nosso respeito. Talvez seja bom ficar alguns dias sozinha. Quem sabe eu não consigo criar coragem de saltar, de uma vez por todas, desse romance-precipício que fui inocentemente escalando.

Na chuva com BenjaminOnde as histórias ganham vida. Descobre agora