Conversamos por horas sobre filmes e livros, tanto que os outros adultos ficaram entediados e foram saindo do quarto até ficarmos só nós dois. Nem notamos quando isso aconteceu.

No final do dia, pediu que eu abrisse a janela. A luz alaranjada do fim da tarde inundou o quarto.

— Olha só que coisa linda, Ick! — Ick é o apelido que ele criou para mim. — O sol se pondo é lindo. As cores, as sombras, tudo! Vou te contar que, nos últimos dias, eu também tenho visto o sol nascendo e ele não fica para trás em nada. Ouça o que estou dizendo, eu deveria ter reparado nisso quando tinha mais anos de vida pela frente. Aconteceu um espetáculo literalmente em cima da minha cabeça todos os dias e eu nunca reparei. Se eu pudesse fazer tudo de novo, nunca mais me esqueceria de apreciar o pôr do sol.

Eu não gostei da forma como ele se referiu à vida.

— Mas você ainda pode ver o sol se pondo, né? — Falei. — Quando sair daqui você poderá fazer isso todos os dias, tio.

— Para com isso, Ick. — Tio Otávio estava muito calmo. — Acho que, pelo menos quando estamos a sós, podemos parar de fingir. Um homem sabe quando está morrendo. — Voltou a encarar a janela. — Sabe, Ick, eu não tenho medo da morte. Nada é mais estúpido do que ter medo de coisas inevitáveis. Você já viu alguém por aí correndo e gritando com medo do oxigênio? É a mesma coisa!

Forcei uma risada porque achei que isso era o que ele gostaria que eu fizesse. Nossos olhos se encontraram e tio Otávio continuou falando:

— Vou te contar uma coisa, garoto. Se você tiver mais sorte do que eu, vai acordar um dia se sentindo um merda. Suas costas vão doer, sua pele toda estará enrugada e você não terá nem o luxo de ter dentes de verdade na boca. Só então você vai reparar nela pela primeira vez.

— Nela quem?

— Na vida. Vai reparar na vida como nunca fez antes. Mesmo com a memória em decomposição, daquele tipo que te faz esquecer até o nome dos netos, você vai lembrar de todas as suas escolhas, de momentos e de tudo a que já renunciou. A vida cobra, Ick.

Eu era novo demais para entender tudo o que ele estava dizendo, mas tio Otávio parecia animado em compartilhar suas epifanias, então deixei-o continuar:

— Vai chegar um dia, e eu sei que vai, porque acontece com todo mundo, em que você terá que decidir entre o mais seguro e o que você realmente quer. As pessoas tendem a escolher o mais seguro, por razões óbvias. Seu pai é um bom exemplo disso. Sabia que ele queria ser nadador profissional? Provavelmente teria conseguido, com aqueles ombros largos de gigante holandês. Só que o seu pai achou melhor pensar, descobriu como é difícil ser atleta no Brasil, a dificuldade que é conseguir patrocínios e, então, desistiu. Sem ofensas, eu sei que ele é seu pai, mas nós dois sabemos que hoje ele deve ser a pessoa mais chata que já pisou na Terra!

Tio Otávio parou de falar e tossiu. O som não parecia humano, mas era próximo ao do motor de um carro velho lutando para funcionar. Levou um lenço à boca e, quando jogou no lixo, notei que estava sujo de sangue.

— E existe um sério problema em viver assim — voltou ao raciocínio de onde parou, como se não tivesse acabado de acontecer algo assustador. — Quando ele estiver velhinho, vai olhar para trás e fazer a mesma pergunta: "e se?".

— "E se?"

— Sim, Ick. A pergunta mais cruel da história da humanidade! Esses "e se" podem te matar! Haja o que houver, não deixe que os "e se" entrem na sua vida ou você estará condenado a sentir uma pequena agonia no lado esquerdo do peito para sempre!

Eu fingi que entendi o que tio Otávio quis dizer com o sermão e a conversa tomou outro rumo depois disso. Estávamos enumerando as razões pelas quais Paul McCartney era melhor do que John Lennon quando a enfermeira apareceu à porta avisando que o horário de visitas havia terminado. Ao me despedir, falei:

— Você vai ficar bem, tio.

— É como Bukowski disse: eu não me importo se vou viver ou não, só quero me livrar da droga desses aparelhos. — Charles Bukowski era seu escritor favorito.

— Tenho quase certeza de que Bukowski nunca disse isso.

— Ah não? Bem, para mim, parece algo que ele diria.

Eu ri.

— Tchau, tio.

— Tchau, Ick.

O quarto não estava mais pintado de laranja, tudo estava escuro. O pôr do sol tinha terminado.

Tio Otávio faleceu quatro horas depois.

Nós sabemos que vamos morrer, mas só quando acontece com alguém próximo entendemos que realmente isso significa. É quando perdemos a ilusão de imortalidade que cultivamos. Não lidei bem. Olhava para as pessoas à minha volta e tentava descobrir como cada uma delas morreria. Comecei a ter crises estranhas no meio da rua, quando respirar ficava difícil e o meu coração acelerava. Pensava que morreria a qualquer momento, de qualquer jeito. Não confiava mais no meu próprio corpo, um amontoado de carne e sangue capaz de decidir se eu existo ou não. Uma vez, acordei de madrugada e fui até o quarto da minha mãe.

— Eu vou morrer — falei baixinho, para não acordar meu pai, que dormia do outro lado da cama.

— Sim, mas não hoje — respondeu. — Deita aqui comigo.

E dormi.

Eventualmente, fiquei melhor. Todas as crises se tornaram lembranças distantes. Ainda sinto falta do tio Otávio, mas ele se transformou em uma memória boa.

Nenhum de nós sabia que aquela última conversa que tivemos ajudaria a moldar a minha personalidade para o resto da vida.

SEGREDOS ESCONDIDOS EM CAIXAS DE SAPATOS (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now