Revelações Inconscientes

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O contato com seres humanos em apenas dois dias havia feito a minha mente. Havia mudado o meu coração. E meus sentimentos. Por que sentir de forma tão intensa? Por que sentir que você precisa amar, desesperadamente? Seja o que for isso, vocês, humanos, são incríveis. E eu gostaria de poder sentir isso de novo, todos os dias. Quem eu sou? Quem eu fui antes de me tornar um Cupido? Por que eu estou aqui? O que eu tenho de diferente? Não me lembro de nada antes do início do século XVIII.

Decido acordar. Eu estava em um novo corpo, então deveria agir de forma correta. Agir como eu deveria agir dentro dele. Achar sua alma gêmea. Quanto a Javier, eu decidi que apenas o encontraria no restaurante, e que após, eu voltaria para consertar a vida do meu hospedeiro.

Não foi difícil abrir os olhos. Fiquei frente a frente com o espelho, encarando a mulher que tinha ali. Vinte e dois anos. Olhos fundos. Magreza extrema. Anorexia. Os cabelos loiros pálidos só contribuiam para a formação de um zumbi em potencial. Tentei pegar uma escova para prender seus cabelos, mas minhas mãos falharam. Decidi cuidar do corpo desta menina e comer de forma correta, nem que fosse apenas por dois dias.

Seu apartamento era bem decorado, exceto pelos inúmeros bilhetes colados em papel colorido pelos móveis.

"Você é feia."

"Olha, como está enorme de gorda!"

"Você deveria emagrecer."

"Cuide-se mais, baleia."

E todos os outros que eu preferi não ler. Todos os papéis tinham algo de deprimente neles. Talvez ela mesma fosse deprimente. Mas não naquele dia. Prendi os cabelos de Maria em um rabo de cavalo, - sim, seu nome era Maria - coloquei sua melhor roupa e decidi que aquele era o dia em que ela seria feliz. Se eu não a ajudasse com sua vida romântica, ao menos poderia ajudá-la com sua dificuldade em comer. Peguei seu celular e vi que estava a poucos quilômetros do restaurante em que marquei de me encontrar com Javier. Como eu ainda tinha bastante tempo antes que fosse para o restaurante, sentei-me e tomei um suco de laranja, com três biscoitos. Comi vagarosamente, para que não passasse mal.

Maria é uma modelo argentina. Super cobiçada, aparece em vários lugares. Faz vários comerciais. E tem sempre aquele sorriso. Sim, aquele que todos os artistas tem. Sorrisos enigmáticos, que sempre escondem alguma coisa.

Vasculhei suas memórias em busca de alguém que pudesse ser um amante em potencial. Nenhum. Todos ex-namorados babacas, que fecharam o coração dela para qualquer tipo de amor. Decidi procurar em sua mente pessoas que poderiam ser interessantes em seu trabalho. Bingo. Juan Abreu. Peguei seu telefone e liguei para ele. O telefone toca duas vezes antes que ele atenda.

-Maria! Que surpresa. Como você está? Estou com saudades. - A voz suave era convidativa. Certamente Maria deveria ter uma queda por ele.

-Estou bem, e você? - Não esperei ele responder. - Olha, eu estou afim de espairecer hoje, e queria te perguntar se podemos sair. - Não pensei no quanto isso podia soar ruim para ela. Ela poderia parecer atirada. Mas tanto faz, eu só tinha dois dias mesmo.

-Claro, minha linda! Faz tempo que não saímos para comer algo juntos. Geralmente você prefere nem sair. Ou sair para falar de capas de revista, ou fotos, ou publicidade.

-Nova pessoa, não é? - Eu ri sem vontade. - Pode vir me buscar à noite, então?

-Sim, às seis. Me espere, linda.

-Claro. Beijos. - Não queria começar aquela palhaçada de "não, desliga você",então eu desliguei o telefone. Dirigi-me ao estacionamento e procurei sua moto. Finalmente eu iria dirigir uma moto. Caminhei vagarosamente até ela e alisei o banco. É hora de sentir. Pensei.

Meu coração estava tão acelerado quanto a própria moto. Em autoestrada, eu andava a cento e cinquenta quilômetros por hora, e certamente poderia ser multada - se realmente houvesse algum policial na pista. Era ainda melhor do que andar de avião ou carro. Eu gritava a plenos pulmões, e ria, e chorava, tudo ao mesmo tempo.

Quando parei em frente ao restaurante, minhas pernas cambalearam ao sair da moto. Caí no chão e ri sozinha comigo mesma. Sinto duas mãos grandes e fortes me levantarem.

-Você está bem, moça? - Eu o encarei. Javier, novamente. E ainda faltavam duas horas para que nos encontrássemos.

-Estou ótima, Javier. - Falei. E ele sorriu.

-É você.

-Sim, sou eu. Agora, me deixe entrar e comer alguma coisa, que eu estou morrendo de fome.

-Quem é essa aí?

-Maria, uma anoréxica famosa, com ex-namorados babacas. Prazer. - Eu estendi a mão. Ele pegou e apertou-a.

-Prazer, Maria. O que vai querer para comer?

-Qualquer coisa que possa encher a porcaria desse estômago que está gritando desde a hora que eu acordei.

-Seu pedido é uma ordem. - Ele chamou a garçonete e fez nossos pedidos. Depois, voltou os seus olhos para os meus e me encarou por um bom tempo. - Comece a explicar.

-Isso soou autoritário. - Ele revirou os olhos e eu sorri. - Bem, por onde posso começar? Eu sou - dou uma pausa, não sabendo por onde começar. - o Cupido. Eu não sei o meu nome, não sei de onde vim. Só sei que estou aqui, e tenho uma missão a fazer. Minha missão é juntar pessoas. Fazer as pessoas apaixonarem-se umas pelas outras.

-Você é o... Cupido. - Ele colocou a mão no queixo. - Entendi. E você não tem um corpo? Quer dizer... Um corpo só seu?

-Geralmente, eu tinha. Mas não é o que vocês classificariam como um corpo. Vocês me classificariam mais como um espírito. Até porque eu não sentia da mesma forma que vocês, humanos, sentem.

-Como assim?

-Não sei. Os sentimentos são mais vívidos, mais limpos. Eu sempre tenho a absoluta e concreta certeza dos meus sentimentos. Tudo é mais alegre. Tudo é melhor, estando no corpo de um humano. Minha supervisora me mandou aqui porque eu estava indo mal em meu trabalho. Então ela pediu que eu ficasse dois dias no corpo de uma pessoa e encontrasse sua alma gêmea em potencial.

-Isso é definitivamente estranho. Mas consigo acreditar. Até porque é o mesmo brilho no olhar da menina que vi ontem. A mesma forma de falar. O mesmo jeito de andar. Elas são elas, mas com você dentro delas, muda tudo.

Olhei ao nosso redor. O restaurante vazio, exceto por uma família sentada em um canto e um homem loiro com um chapéu, sentado em outro. Nossa conversa nunca poderia ser ouvida daquela distância.

-E então? - Ele perguntou.

-E então que se eu não encontrar a pessoa perfeita para todos os corpos, eu não tenho certeza de que vou continuar sendo o Cupido.

-E você não se lembra de nada antes disso?

-Absolutamente nada. Tudo antes do século dezoito é um grande borrão para mim.

-E ontem? Aquela menina? Você estava no corpo dela...

-Não falei com ninguém a não ser você. Não me envolvi com ninguém a não ser você. As memórias delas dos dois dias anteriores estão todas ligadas a você.

-E eu acho que teremos um problema. - Virei-me para olhar quem havia entrado no restaurante. Era ela. Rebeca. E não parecia estar feliz.

MemóriasWhere stories live. Discover now