Capítulo XXI: Pancôme, as suas Idéias e o Amanuense

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Este caso do amanuense e alguns outros que aqui vão ser contados na maioria, aconteceram na alta administração da Bruzundanga, quando foi Ministro de Estrangeiros o Visconde de Pancôme.

Mas, dentre todos os seus atos, aquele que fez propriamente escola, foi a nomeação de um amanuense para a sua secretaria; e os demais, quer quando foi ministro, quer antes, se entrelaçam tanto com a célebre nomeação, esclarecem de tal modo o seu espírito de governo e a sua capacidade de estadista, que tendo de narrar aquele provimento de um modesto cargo, me vejo obrigado a relatar muitos outros casos de natureza quiçá diversa. Entro na matéria.

Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria.

Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se um dos habilitados; mas Pancôme nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá-las bem fielmente e respeitá-las cegamente.

A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o instante. Ninguém lhe tomava conta por isso e ele fazia do seu ministério cousa própria e sua.

Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiro por todos os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam panegíricos hiperbólicos.

Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzundanguenses de origem javanesa — cousa que equivale aqui aos nossos mulatos.

Constituíam o seu pesadelo, o seu desgosto e não julgava os indivíduos dessas duas espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a vergonha da Bruzundanga, no seu secreto entender.

Esta preocupação, nele, chegava às raias da obsessão, pois o seu espírito de herói da Bruzundanga não se orientava, no que toca à sua atividade governamental, pelos aspectos sociais e tradicionais do país, não se preocupava em descobrir-lhe o seu destino na civilização por este ou aquele tênue indício a fim de, com mais proveito, auxiliar a marcha de sua pátria pelos anos em fora. Ao contrário: secretamente revoltava-se contra o determinismo de sua história, condicionado pela sua situação geográfica, pelo seu povoamento, pelos seus climas, pelos seus rios, pelos seus acidentes físicos, pela constituição do seu solo, etc.; e desejava muito infantilmente fabricar, no palácio do seu ministério, uma Bruzundanga peralvilha e casquilha, gênero boulevard, sem os javaneses, que incomodavam tanto os estrangeiros e provocavam os remoques dos caricaturistas da República das Planícies, limítrofe, e tida como rival da Bruzundanga.

Enfim, ele não era ministro, para felicitar os seus concidadãos, para corrigir-lhe os defeitos em medidas adequadas para acentuar as suas qualidades, para aperfeiçoá-las, para encaminhar melhor a evolução do país, acelerando-a como pudesse; o visconde era ministro para evitar aos estranhos, aos touristes, contratempos e maus encontros com javaneses. Ele chegou até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabo destes últimos...

Mas como ia dizendo, Pancôme, no seu ministério, fazia tudo o que entendia; mas, mesmo assim, não se atrevia a romper abertamente com aquela história de concursos, com os quais desde muito andava escarmentado, devido a razão que lhes hei de contar mais tarde.

Era, afinal, uma pequena hesitação no espírito de um homem que tinha tido até ali tão audazes atrevimentos para desrespeitar todas as leis, todos os regulamentos e todas as praxes administrativas.

É bastante dizer que, não contente em residir no próprio edifício do ministério sem autorização legal, Pancôme não trepidou em estabelecer na chácara do mesmo um redondel de touradas, um campo de football, um café-concerto, para obsequiar respectivamente os diplomatas espanhóis, ingleses e suecos.

Os BruzundangasWhere stories live. Discover now