Quem vive de passado?

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Quando Sérgio chegou em casa, o sol já despontava no horizonte. Tinha passado os últimos dois anos fazendo todo tipo de trabalho extra que conseguia para pagar as contas e não se lembrava da última vez em que tivera uma noite de sono decente.
Afrouxando a gravata, desabou ali mesmo no sofá, com um dos braços sobre o rosto para bloquear a claridade do amanhecer, e apagou.

- Papai, papai!
O homem grunhiu e abriu os olhos contrafeito, encontrando os azuis de sua filha, que saltou e jogou os bracinhos sobre ele, fazendo-o sorrir.
- Bom dia, canarinha. - disse, afagando os ralos fios platinados. Era impressionante o quanto Letícia parecia com sua mãe. Pálida, loira e de olhos azul celeste, cada traço lembrava Sofia - do formato do rosto aos lábios finos. Um lembrete constante de que ela já não estava ali. Uma dose diária de tristeza e amargura.
- Estou com fome!
- Eu também.
Sérgio respondeu preguiçosamente, beliscando levemente uma das bochechas da pequena. Em seguida respirou fundo, alongou o corpo muito maior que o sofá onde dormira não mais que três horas e se levantou com algum esforço cada as dores musculares em todo o corpo.
- Vem, vamos ver o que tem para comer.

Sofia foi levada repentinamente por um acidente de carro. Trabalhava na cidade e tinha de ir e voltar todos os dias pois Sérgio não aceitava a ideia de se mudar do sítio que herdou dos pais. Cresceu ali, aprendendo a plantar, colher, criar animais e usufruir da natureza. Os produtos do solo que por toda a vida serviram de subsistência para seus pais, já não podiam competir com os vastos comércios urbanos de modo que ele precisou complementar a renda familiar depois que Sofia faleceu. Não teve outra alternativa então senão pedir emprego nos mesmos locais onde vendia seus orgânicos mas, sem formação e com as obrigações do sítio, o melhor que conseguia era os bicos noturnos como segurança.

- Eu preciso de um novo emprego.
Disse Sérgio ao seu amigo de longa data e capataz, Antônio, enquanto trabalhavam um pedaço de terra para plantação.
- Você precisa é de uma mulher.
Arfou o homem, ficando a pá no solo e apoiando os braços sobre o cabo. Quando Sérgio também pausou para verificar se ele pretendia elaborar aquele argumento, apontou o queixo em direção ao galinheiro.
Sérgio olhou sobre o ombro para ver sua filha divertindo-se a alimentar as galinhas, que não pareciam se importar com sua presença.
- A menina precisa de uma mãe.
- Ela tem uma mãe.
Respondeu friamente, voltando ao trabalho.
- Mas ela tá morta.
- Vai começar?
- Tu sabe que as moça da região são doida n'ocê?
- Pode falar menos e trabalhar mais?
- Janice, minha prima, não fala  n'outra coisa. Vive pendurada nas minhas orelha pedindo pr'eu juntar cês dois. E ela também tem quarenta e dois.
- Quarenta e dois o quê?
- Anos, sô!
- Eu tenho quarenta e três.
- Um ano a mais ou menos num faz diferença. O que tu acha dela?
- Quem?
- Janice, uai!
- Fala demais.
- E quem num fala demais perto d'ocê, cumpadre
- Parece ser um mal de família.
- Que nada! Vosso pai, que Deus o tenha, era bem conversadeiro, e vossa mãe também é bem chegada numa prosa.
Ofegante, Sérgio imita o outro, descansando a ferramenta é apoiando-se sobre ela enquanto recupera o fôlego. Ao olhar para Antônio, precisa apertar os olhos sob o sol para enxergá-lo.
- Tô falando de você.
Aquilo parece servir o propósito de calar a boca do amigo, que bufa contrafeito, voltando a arar o solo.

Aquele tipo de conversa havia se tornado constante em sua rotina desde uns cinco ou seis meses atrás. Todas as pessoas mais próximas à ele começaram a demonstrar preocupação com sua solidão e, de uma maneira ou de outra, interferir em sua vida na esperança de que ele seguisse em frente. Mas o assédio... esse começará de imediato. Não poderia dizer quantas moças foram inapropriadamente atenciosas mesmo durante o velório de Sofia! E não pararam desde então.
Pudera... Sérgio era um homem raro. Além de homem de família, passava dos 1.90m, tinha ombros largos, corpo esculpido pelo trabalho duro, finas linhas de expressão ao lado dos olhos cor de mel que só aumentavam o charme do rosto quadrado. Dono de uma beleza rústica, máscula, não passava despercebido não importando onde fosse, pois sempre preenchia muito bem os jeans e camisas de flanela, seus trajes usuais.

Havia conhecido Sofia na cidade, ao buscar terminar os estudos em um projeto de educação para jovens adultos, pois precisara abandonar a escola para ajudar a mãe com o sítio após o falecimento do pai.
Apaixonou-se à primeira vista pela professora e foram anos de cortejo até que finalmente reuniu coragem para pedir a mão da moça. Foi uma surpresa para ele que uma jovem estudada da cidade topasse se envolver com um caipira que acabara de concluir o ensino médio aos 29, mas o relacionamento seguiu à distância até que o noivado virou casamento.
Foram dez anos juntos antes de Sofia decidir engravidar e, apenas três anos depois de dar a luz, partir. Letícia mal se lembrava dela mas Sérgio não conseguia conceber a ideia de substituí-la
- Ninguém nesse mundo é melhor que ela, mãe.
- Não se trata disso, meu filho. Primeiro: tem muita gente nesse mundão de Deus e você não deve conhecer doze. Segundo! - Ela eleva a voz, impedindo o protesto de Sérgio. - Precisa mesmo de alguém melhor que ela? Sofia era mesmo um anjo de Deus, entendo que seja difícil se contentar com menos, mas você e Lelê precisam de ajuda. Ela precisa de uma mãe.
- Ela tem a senhora.
- Eu sou avó.
- Dá no mesmo.
- Eu já fui mãe, não quero ser de novo.  Mãe cria. Vó malcria.
Ela consegue arrancar um sorriso do filho com isso. Dona Fátima cuidava da neta todas as noites em que o filho trabalhava na cidade.
- Não pode passar a vida toda assim. Não vai sobreviver muito mais tempo se matando de trabalhar desse jeito. Você mal dorme. Mal come. Vive abatido. Tristonho. Já tá magro como um bezerro!
- Ainda sou forte como um touro, mamãe. Eu estou bem.
Para tranquilizá-la, enfiou mais um pedaço de broa na boca e lavou tudo com café.
- Eu preciso ir. Fica com Deus.
Disse ainda de boca cheia, deu um beijo na testa da mãe e saiu porta afora vestindo o blazer.

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⏰ Last updated: Jul 06, 2021 ⏰

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