34- MEMORIAS (Recordações)

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Passei a vida inteira ouvindo que sou só um corpinho bonito e deveria ser mansinha para ter o que quero. Vaffanculo idiotas! Eu sou Lucrézia Caccini e vou provar para todos o que uma mulher com a mente brilhante, regada a ódio, é capaz. Enquanto pensava, esqueci de subir o roupão e as marcas continuaram à mostra. Distraída, não notei quando Sandra chegou.

- Precisa de algo, bambina? - A mulher observou as manchas levemente arroxeadas.

- Não se preocupe, Sandra.

- Lucrézia. - Segurou minhas mãos com um olhar terno. - Não deveria lidar com tudo sozinha. Conte comigo! - Acariciou as minhas palmas com os dedões.

A senhora me abraçou com um carinho surpreendente.

- Estou bem! - Ri fraco e dei uns tapinhas nas costas dela.

Aprendi desde cedo a confiar só em mim, a não depender de ninguém. Se eu queria qualquer coisa, tinha que lutar por ela. Apesar de me sentir acolhida nos braços acalentadores da governanta, não posso baixar a guarda. Já basta ter deixado Piero entrar na minha vida desse jeito, sem aviso prévio. Não imaginava que o moreno fosse tão difícil.

- Ele não é ruim, bambola. Piero é um bom garoto. É claro, um pouco impulsivo.

- Piero já é um homem feito, responsável pelas próprias ações. - Retruquei.

- Tenha paciência com ele. - Implorou com os olhos e eu dei calado como resposta.

- Vou pedir para virem limpar essa bagunça. - Apontou para janela quebrada.

- Grazie, Sandra!

[...]

Os moços da manutenção foram rápidos, quando voltei da faculdade já haviam consertado os móveis. Neste momento, tenho as escrituras das Joalherias e da Mansão em mãos, que por sua vez, estão um pouco trêmulas. Uma parte de mim não achava que conseguiria seguir com o planejado, mas cheguei até aqui. Olhando o final da tarde se formando, sorri para o vento.

- Está rindo do que, principessa? - Matteo perguntou rindo também.

Entreguei os papéis a ele.

- Isso é...

- Aham... Vamos! Não quero esperar mais nenhum minuto.

Sai puxando Matteo pela casa, rumo a garagem. Estava quase pulando de alegria. Precisava ver com meus próprios olhos para acreditar realmente.

O resto da viagem seguiu calma. Matteo, como sempre, sabia respeitar o meu silêncio e agradeço por isso. Meu irmão não tem que lutar as minhas batalhas, ele já sofreu demais.

Conforme nos aproximávamos da antiga casa do Nonno, meu peito apertava, uma angústia gigantesca me atingiu. Desde il dannato giorno não passo nem na frente desse bairro, e hoje estou diante do portão dourado com dois "C" gravados na fechadura. E, atualmente, as coisas pareciam menores, ou talvez eu cresci.

O jardim que um dia foi digno de capa de revista se encontra deteriorado, as rosas que reguei com tanto carinho, durante anos, foram substituídas por mato quase sem vida. Não sobrou uma janela intacta, todas foram quebradas, as paredes externas pichadas, o teto tinha mais buracos que uma peneira. A casa de Francesco Caccini estava caindo aos pedaços.

Doía profundamente ver o lugar onde nasci todo destruído. Foi impossível não associar aquela imagem lúgubre a minha família: destroçada e arruinada. Não restou muita coisa de tudo que um dia eu amei. Sempre me apeguei ao passado, aos poucos momentos alegres e hoje percebo que são só saudosas lembranças.

Tive de me conter para não chorar. Ao sair do automóvel, encarei o local exato, encoberto pela grama alta. O maldito local. Imediatamente, vi a Lucrézia apavorada de doze anos atrás, a cabeça do meu avó rolando, a satisfação do velho Martinelli em matar o senhor Caccini, os sebosos estuprando o cadáver do Nonno. Meu estômago revirava só de lembrar. Enquanto segurava as lágrimas e o vômito, cravei as unhas na minha própria pele e não demorei a sentir o tecido se rasgando, uma dor mínima comparada ao sofrimento da minha alma dilacerada.

Encarei Matteo, ele estava atônito. Agora não era o poderoso consigliere, era o menino assustado e acuado que se tornou cativo de um psicopata. Como eu queria ressuscitar Vincenzo, só para matá-lo de novo. Observar meu primo nesse estado, me trucidava de dentro para fora. Nunca consegui reunir forças o suficiente para contar a ele o que eu realmente vi, não tinha coragem. Nunca disse a verdade a ninguém. Nunca nem sequer pronunciei em voz alta o ato libidinoso que presenciei.

Dei uma passada e estendi a mão na direção de Matteo, queria que ele viesse comigo.

- Não posso fazer isso, Lucrézia. - Disse quase inaudível com os olhos marejados, eles me imploravam para sair daqui. - Não posso!

Admito que meus instintos também suplicavam para que desse meia volta, mas apesar de já ter aceitado que a infelicidade é o meu destino, ainda preciso de um encerramento.

- Já volto! - Avisei, não permitirei que Matteo se machuque mais por causa das minhas sandices.

- Você não vai entrar lá sozinha. Vou junto!

- Leve o tempo que precisar, fratello. - Lancei um olhar compreensivo, me afastei e visualizei seu corpo diminuindo de tamanho .

No batente da porta, fiquei paralisada. Tendo ampla visão da sala depredada: as pinturas renascentistas vandalizadas, as estátuas de mármore despedaçadas, as balas ainda ornavam as paredes, junto com as novas rachaduras. Respirei fundo e o odor da pólvora e do sangue fresco inundou o recinto, as recordações começaram a se misturar com a atualidade e minha respiração ficou acelerada. Lutando contra os meus medos, entrei e segui o caminho. Segurando o choro e evitando olhar para os lados ou para o piso e relembrar dos defuntos estirados

Avancei. A cada passo que dava era uma tortura. Meus olhos se contraiam e minhas pernas ameaçam falhar. Só estava aguardando o instante em que iria desabar, que ia ceder de uma vez por todas aos traumas da minha vida miserável.




Continua...



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Vendetta di Lucrézia (Vingança de Lucrézia)Where stories live. Discover now