Capítulo Trinta e Um

Começar do início
                                    

Ainda encabulada, Elena aceita mais um pedido meu. Saio da cama e vou à mesa de estudos, pego meu caderno de desenho e um grafite. Sento na beirada da cama com os materiais, abro em uma folha limpa e aponto o grafite.

—Vai me desenhar como uma de suas francesas? — Sentada na cama, sem saber como se posicionar, Elena pergunta.

No primeiro momento não entendo a pergunta. Desenhar como uma de suas francesas? Reflito um pouco, não é uma fala de Titanic?

— Se você quiser, Rose. — respondo, me ajeitando na cama.

— E como vai ser? Fico deitada, sentada…?

— Fica como está agora.

Não precisa de pose, um sofá ou um colar com o coração do oceano. Ela está perfeita com a minha camiseta, os cabelos bagunçados, as tatuagens e o sorriso encabulado.

Começo o esboço, traçando as linhas cuidadosamente. O filme roda atrás de mim, contudo, não escuto nada, minha atenção é toda da menina à minha frente. 

Não sei quanto tempo passa, mas quando termino o desenho, a noite está alta e a lua brilha no céu escuro.

Entrego o caderno para Elena, para quem está tão reticente no início, ela se mostrou uma ótima modelo. Ela analisa o desenho, traçando as linhas com a ponta do dedo. Ansioso, aguardo sua resposta.

— O desenho está… está perfeito. — admirada, ela responde.

— Tudo graças a modelo.

Levanto da cama e estico os braços para cima, abro e fecho a mão algumas vezes, aliviando a tensão. Caminho para o banheiro, lavo a mão, as manchas do grafite descem pelo ralo.

De volta ao quarto, vejo Elena com um papel na mão e não é o seu desenho. Conforme me aproximo, sou capaz de identificar os traços. É a cobra, a sua tatuagem de cobra, passada para o papel a tanto tempo que nem lembrava mais dela.

— É a minha tatuagem.

— É… — apesar de não ser uma pergunta, respondo da mesma forma.

— Quando fez? — os castanhos dos seus olhos observam cada reação.

Sinto um calor tomar conta do meu rosto, sei que estou corando e não quero. Admitir que o desenho foi feito a semanas, vai me fazer parecer um perseguidor. Na época não passávamos de colegas com duas ou três palavras trocadas.

— Tem uns dias. — opto pelo tempo menos pior.

— Tá mentindo.

— Não estou. — Estou sim, mas como Elena sabe, não sei dizer.

— Sabia que é possível detectar uma mentira através da linguagem corporal? — não respondo, porque Elena não quer uma resposta. — Por exemplo, o tom da voz, a postura do corpo, gestos e até a organização dos objetos dizem muito sobre quem fala.

— Interessante, princesa.

— Pois é, no seu caso você pisca duas vezes seguidas como se a lente incomodasse, mesmo que agora esteja usando óculos.

— Não pisco duas vezes.

— Pisca sim e não é a primeira vez. Agora, me responde: Quando fez o desenho?

— A alguns dias. — respondo, concentrando em não piscar.

Não deve ter adiantado, porque Elena começa a rir.

— Piscouuu — cantarolando, ela joga na minha cara.

Subo em cima dela, a prendendo na cama. Levo os dedos nas suas costelas e começo a fazer cócegas. A sua risada ecoa pelo quarto, bonita e alta. Pequenas lágrimas escorrem dos seus olhos, as bochechas se avermelham.

— Paraaaa Ra… — a fala é cortada por outra explosão de risos. Sua respiração está ofegante, as tentativas de falar são frustradas pelo riso.

— Chegaaa… —paro as cócegas, o tórax de Elena sobe e desce rápido, agitado pelo ataque.

Aos poucos sua respiração volta a normal, ela leva as mãos ao meu rosto, ajeitando o óculos.

— Sério, quando fez o desenho? — ela não vai esquecer, não importa quantas vezes eu a distraia.

Desviando o olhar do seu, respondo:

— No mesmo dia que pedi as aulas. — encaro a lua pela janela, pedindo que o momento não fique estranho.

— Tem mais ou menos um mês. — confirmo.

Ficamos em silêncio, continuo com a vista na lua, Elena se mexe embaixo de mim, saio de cima dela. Sentada na cama, ela passa os braços pelo meu tronco. O abraço não é longo, logo sinto um beijo na bochecha e depois outro no canto na boca.

— Eu amei o desenho. — sussurra perto do meu ouvido. — Os dois, meu amor.

Elena me solta e se encosta na cabeceira da cama, pegando o caderno de novo. — Desenha muito bem mesmo. — diz, folheando as páginas.

Gosto de observar suas expressões, a cada desenho ela aponta sua parte favorita.

— Nunca pensou em trabalhar com tatuagens?

— Não. — respondo, dando de ombros sem muita atenção. — Não faço o perfil.

— E qual é o perfil?

— Você sabe, alternativo, tatuado…

— Eu não tenho cara de quem vai prestar engenharia aeroespacial. Cara não quer dizer nada.

Mesmo sabendo que Elena tem razão, não me vejo trabalhando com tatuagens. Não consegui ficar na sala do estúdio vendo-a ser tatuada, imagina ser a pessoa que causa a dor. Sem chances.

— Você está certa, mas ainda assim, não é uma área que me interessa.

Dando de ombros, ela deixa o assunto de lado.

— Vai dormir aqui? — questiono, esperando uma resposta positiva.

— Não vou, meu amor. — tento não parecer muito decepcionado. — Não quero ver seus pais.

— Achei que gostasse dos meus pais. — E achava mesmo, no jantar aqui em casa, Elena e Daniel conversaram, riram, trocaram histórias, tornaram-se melhores amigos.

— Eu gostava, porém eu vi a forma que chegou em casa, desnorteado e machucado… Se eu der de cara com um deles vou acabar xingando e mandando para a casa do caralho. E eu não quero piorar a situação.

Aceitou sua posição, contrariado. Acariciando meu cabelo, Elena diz: — Dorme na minha casa.

Eu quero dizer sim. Eu quero dormir na casa dela e ter a sensação de ter pais legais, contudo, fugir não mudará nada. E Joana ainda tá puta comigo, dormir fora de casa está fora de cogitação.

— Não posso. — respondo, baixando os olhos para as minhas mãos, a ponta dos dedos ainda conservam resquícios do grafite.

Elena veste o short e faz um nó em minha blusa, o que diminui o tamanho dela, expondo a pele macia de sua cintura. Com os tênis calçados, ela pega a bolsa na mesa.

A acompanho ao lado de fora, não quero que ela vá, entretanto não posso ir com ela. A frustração faz um bico se formar nos meus lábios. Como uma criança birrenta espero que minha demonstração surta efeito e a faça desistir. E como uma criança birrenta, assisto minha birra ser em vão.

— Não faz essa cara. — Com os braços passados pelo meu pescoço, ela diz. — Vamos nos ver segunda.

Elena morde meu lábio e me beija. Abraço sua cintura, trazendo- a mais para perto. O beijo é calmo, de despedida. Com um selinho, ela se despede. A vejo entrar no carro e dar partida.

Volto para dentro de casa, agora, vazia e escura, apenas um eco do que poderia ter sido.

A física entre nós [CONCLUÍDO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora