Batida à Porta

2 0 0
                                    


Café passado. Mesmo tão cheiroso não animava mais o espírito de rogério, já tão inerte de quaisquer ares espirituosos.

A TV ligada era a única coisa que trazia cores à sua quitinete tão cinza por sua presença e pelo céu que anunciava um temporal.

Entre uma golada e outra daquela quentura negra seu peito enfraquecido se abalava com as borboletas geladas da ansiedade. Elas vinham com cada imagem de ambulância, de hospitais abarrotados e tão complexos de se olhar que mal dava pra entender onde era a maca, onde começava e terminava o emaranhado de fios e onde começa e termina o sofrimento sem fim daqueles que morriam sufocados em desespero.

"que parada louca"

Seu peito era fraco. "Evite fumar senhor rogério, seus pulmões estão ficando fracos".

Ele sabia que seria fatal entrar em contato com aquele vírus.

Lockdown, pessoas mascaradas pelas ruas e ele se isolou ainda mais.

Não trabalhava. Vivia da aposentadoria e avisou seus pouquíssimos amigos que não receberia mais ninguém enquanto durasse tudo aquilo.

"quando a pandemia acabar a gente se vê"... Não imaginava o quanto ela duraria.

Semana após semana o isolamento tirava mais e mais das cores de sua casa, de sua pele e de sua mente.

Um dia bateram à porta.

Misturando-se alegria e chateação ele passa a máscara por trás das orelhas, "já vai", veste uma camisa e um short e se dirige à porta.

Ao abrir, já com o discurso de que "não pode receber ninguém" preparado ele dá de cara com o nada. Não há ninguém por perto.

A rua estaria deserta não fosse um vira lata revirando, lá longe, o lixo da esquina.

"pronto, só me faltava estar ouvindo coisas agora".

Logo após trancar a porta se sentiu indisposto e frustrado por não ver ninguém e continuou assistindo sua tv.

Não demorou para uma febre o tomasse por completo, fazendo doer suas têmporas e os olhos lacrimejarem.

O café já não tinha o cheiro bom. Gosto então, nenhum.

Sentiu-se muito cansado e as borboletas voavam a toda velocidade em seu estômago entoando uma cantiga que dizia ser seu fim.

"mas é só coisa da minha cabeça, não tem como eu ter pegado isso"

Na última vez que se levantou para ir ao banheiro estava tão cansado que se apoiou sentado no chão, arfando, procurando o ar como alguém que se afoga no seco.

Ironicamente foi através do cheiro que o encontraram depois. Bem antes da pandemia acabar.

Batida à PortaWhere stories live. Discover now