O Planeta do Silêncio

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Havia alguns meses que a peste oriunda do Extremo Oriente (cujo nome, Covid-19, apesar de considerado demasiado técnico pela maioria dos habitantes daquele país logo passou a ser de conhecimento geral) ceifava uma vida atrás da outra na cidade. O primeiro a ser levado fora um senhor na casa dos oitenta anos; os primeiros incessantes acessos de tosse, a temperatura corporal elevando-se em níveis alarmantes, e quando mal conseguia respirar por conta própria os médicos não tiveram dúvida, aquele senhor era o primeiro de muitos atingidos pela Covid-19. Mantiveram-no em internação sob um incômodo respiradouro dum hospital privado até que finalmente sucumbisse ante os olhares impotentes da equipe médica que nada pôde fazer além de isolar o idoso e incluí-lo nas estatísticas dos milhares de mortos assolados ao redor do mundo pela nova pandemia.

As sirenes das ambulâncias gritavam distante, mas Marta, uma mulher na casa dos quarenta anos que passara as últimas semanas perambulando por aí com os dois filhos — Nick, um garoto franzino com pouco menos de dez anos e seu irmão caçula Kyle – e agora vivia em uma gruta com as crianças mal conseguia ouvi-las. Enrolou Nick em seus braços e começou a leitura do mais famoso livro infantil do momento, O Planeta do Silencio. Enquanto mergulhava nas linhas do curto romance sonhava com a imagem do marido a esperando em algum lugar.

"E no Planeta do Silêncio", lia Marta enrolada num cobertor feito de pedaços de papelão, a voz soando como um sussurro inaudível, impedida pela má nutrição e desidratação de tornar-se um som compreensível em sua totalidade "havia paz para todos os homens, os animais conviviam" continuou Marta imputando os últimos resquícios de energia numa tentativa vã de transformar as letras miúdas impressas nas páginas amareladas e quase impossíveis de serem identificadas em sua rotineira leitura sem entonação e desprovida de emoção, "o sol brilhava todos os dias, mas não de maneira escaldante, era enérgico, revigorante" uma pausa para tossir algumas vezes, "e foi lá que finalmente..."

Seus olhos se fecharam e a cena de seu marido beijando sua testa para ir ao trabalho pela última vez, antes do cenário caótico e apocalíptico se instalar, surgiu em seus pensamentos como um sonho da qual ela nunca desejaria acordar.

Sua voz macia e ao mesmo tempo vigorosa, o odor de trabalho e café emanando de suas roupas constantemente amassadas e com cheiro de lavanda seguindo-o onde quer que fossem, a cabeça calva e a barba cobrindo o queixo como um campo relvado sempre roçando seus lábios quando o beijava...

— Não se preocupe – disse Luca beijando a testa de sua esposa ao se levantar da cadeira de madeira ao redor da mesa de mesmo material – as coisas estão ruins, mas já superamos tempos difíceis antes, vamos superar isso também.

— Mas... – iniciou Marta de modo vacilante – Se você perder o emprego, se a fábrica fechar, o que será de nós? E as crianças? Como vamos pagar o aluguel? Não temos parentes, onde vamos morar?

Luca riu. Ele apanhou o controle remoto de cima da mesa e desligou a TV silenciando o noticiário matinal que anunciava sobre as novas medidas restritivas a fim de conter o alastramento da nova pandemia, sugerindo distanciamento social, alertando sobre as multas para aqueles que promovessem eventos ou aglomerações, instituições de ensino fechadas e tentando se adequar no modelo a distância, igrejas cancelando celebrações; enquanto tais medidas já faziam parte da realidade de incontáveis nações ao redor do planeta, o país de Marta e Luca estava apenas engatinhando vagarosamente na mesma direção, pouco a pouco se adequando as novas mudanças impostas à espécie dominante por um inimigo microscópico.

Instantes após a saída de Lucas para seu emprego numa montadora qualquer da cidade, Nick e Kyle, os filhos do casal, chegaram até a cozinha, vindos do quarto e enfiados no uniforme branco de mangas azuladas da escola. Nick, um garoto magro de cabelos escuros e escorridos, segurava a mão de seu irmão Kyle, mais bem descrito como uma versão menor sua; contrariando o rosto sutilmente pálido e nitidamente apavorado de sua mãe, ambos os garotos ostentavam um semblante animado e entusiasmado com algo que somente as crianças conhecem.

O Planeta do SilêncioWhere stories live. Discover now