Prólogo

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            É noite. Tudo caminha em plácido silêncio. Na aurora cálida do amanhecer, só o pipilar das aves notívagas parece dar um sofro de vida à paisagem sombreada da Terra. 

            Em uma janela, às escuras, um vulto quieto observa o desvanecer silencioso da noite e o desperta da alvorada iniciante.

           Seu rosto é pálido sob a luz diáfana da madrugada; seu corpo franzino procura enxergar o rumo, descobrir os primeiros raios de luz que desenharão a verdadeira estrada. 

           Soluços angustiados quebram a quietude fresca da aurora. O corpo franzino apoiado ao peitoril sacode-se ritmicamente, embalado pela dor em clavas de angústia.

           Lenços à boca, a tosse aponta sufocante. A pureza do branco tinge-se de vermelho e o sangue quente em golfadas insopitáveis mancha a camisola pura.

         O magro corpo jovem, num esforço hercúleo, procura erguer-se e fitar o céu em verdadeiro esforço. Seus olhos encovados, abertos, procuram ainda indagar o porquê de tanta dor aos seus catorze anos.

         Lentamente, como uma flor que se abate diante da tempestade, a figura pálida desfaleceu o corpo, deslizando rente à janela perdeu para o chão, mas sua cabeça, recostada ao espaldar, conservou-se voltada para o dia que nascia. Os olhos continuaram abertos, ainda que enevoados.  Pareciam indagar dos mistérios profundos que separam a vida da morte. 

        Após alguns minutos, uma emanação radiante desprendeu-se do corpo hirto, adensando-se, corporificando-se em perfeita réplica da jovem estendida, como se por autêntico milagre, de gigantesca potência, ela se tivesse multiplicado.

        Surpreendia, a forma radiante e translucida olhos para o corpo que acabara de deixar. Seu semblante denotava piedade e amor. 

         Sentia-se leve e saudável. Porém, quando olhava para o corpo inerte, um vivo sentimento de piedade a invadi;  parecia-lhe momentaneamente regressar ao julgo de pesadas cadeias de uma prisão aniquilante. Num desejo instintivo de libertação, procurou afastar-se dele.

       Foi então que viu uma figura radiante e querida caminhar para ela, braços estendidos, rosto banhado por suave bondade.

      Onde teria visto esse rosto, que santa seria ela?

      Respeitosamente ajoelhou-se diante da forma resplandecente.  Sobre seu espírito ainda aterrorizado e inseguro derramou-se uma brisa suave perfumada , beijando-lhe as faces, com o orvalho da manhã, enquanto uma voz dulcíssima lhe alcançava o espírito: 

      _ Nina, está livre! Na rudeza das provas, tal qual pássaro ferido e aprisionado, aguardou a libertação. Hoje viemos buscá-la. Irá conosco para mundos felizes, onde poderá usufruir a paz e a calma que sempre sonhou. Poderá trabalhar em tarefas nobres e desfrutará de boa disposição, de bem-estar. 

      Nina alçou o olhar para o alto e lágrima insopitáveis lhe escorriam em transportantes emoção.

     _ Senhora! Bendita seja, enviada do Altíssimo. Veio me buscar. Meu coração estremece de ventura diante das suaves emoções desta hora sublime que não mereço. Eu me sentiria feliz de seguir adiante, rumo aos mundos encantados onde reside, a desfrutar da paz e da serenidade. Entretando, neste lar que com tanto amor fui acolhida, minha mãe na carne enfrenta com dificuldade a prova da miséria e da renúncia. Meu pai, antes um nobre, hoje luta contra o orgulho e a prepotência, trabalhando duramente por um salário insignificante, cavando a terra dura para o mal conseguir um pouco de pão.  Quatro anjos do Senhor, meus irmãozinhos na Terra, despertaram para a vida em condições difíceis, atingidos pela malária e desnutrição. Se eu me for, com certeza eles irão logo após, pois a fraqueza e a tuberculose ceifarão suas vidas ainda em fase delicada nesta encarnação. Por isso, se for possível, rogo-lhe, senhora: todo bem que por acréscimo a misericórdia divina me concedeu seja revertido em favor dos entes que amo e a quem devo devotamente e carinho. Perdoe-me tamanha ousadia, mas pode ler a sinceridade do meu coração e sentir a dor que me causa partir agora rumo à felicidade enquanto eles sofrem! 

      Curvada em atitude submissa, Nina esperou.

    A entidade iluminada aproximou-se e, alçando a testa com suavidade, alisou-lhe a cabeça com imersa ternura. 

   _ Nina, o que deseja? 

     Nina levantou o olhar que refletia respeito e amor. 

     _ Senhora, permita-me ficar, Embora doente, cuido do lar para que minha minha mãe possa ganhar algum dinheiro. Se eu for embora, ela terá que deixar de trabalhar e menos pão entrará nesta casa. 

     A bela mulher, comovida, sorriu e tornou:  _  Sabe oque me pede ? Se Deus lhe permite o regresso, certamente sofreria muito. O corpo que usou na carne está abatido. Quantas vezes mentiu, dizendo-se alimentada para que a sua pequena ração beneficiasse os demais?  Quantas vezes atravessou as vinte quatro horas sem provar alimentos, numa renúncia verdadeiramente admirável ? Sofreu bastante. Eu lhe ofereço paz, a fartura, a tranquilidade, e você me pede a dor, a doença, a miséria e a morte ? 

      Nina, soluçava> 

      _  Peça a Deus que me permita ficar. É só o que peço. 

         A entidade fixou-lhe o olhar com imensa bondade, onde se refletia um brilho de energia.

         _ Não posso atender a este pedido. Precisa vir comigo. Um dia compreenderá por quê. Só posso lhe dizer que sua estada na Terra terminou. Sua presença doente e sofredora não iria contribuir para aliviar os problemas deste lar. Todavia, não tema. Ninguém permanece abandonado na Terra. Os problemas de seus pais, só eles poderão resolver, lutando, sofrendo, aprendendo. Irmãos devotados zelam por seus irmãozinhos.  Deus permite a prova para que o espírito cresça. Os sofrimentos sublimam o espírito e o reconduzem a Deus. 

        Abraçando-a com carinho, continuou: Depois, quando estiver em condições, se quiser, poderá vir ter com eles, trabalhar para sua redenção. Agora vamos! 

    A jovem, cujos soluços tinham cessado, levantou-se e, abraçada pela sua protetora, prontificou- se a seguir.

       Sentindo-se liberta de um grande peso, pareceu-lhe que seu peito dilatava-se em alegria nunca sentida, enquanto enorme sensação de bem-estar lhe invadia o ser. 

        Entregou-se suavemente e saíram da choupana.

        Enquanto os primeiros raios solares abençoavam o dia nascedouro, transmitindo mensagem do dia, dois vultos enlaçados desapareciam rumo ao infinito: permaneceu apenas um corpo pálido e emagrecido, um rosto belo e sereno, uma camisola manchada de sangue, abandonados para sempre, como veste inútil e rota que o tempo se encarregaria de transformar e destruir na constante mutação da natureza. 



                                                           

Laços eternosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora