— ITA, né. Uma faculdade e um curso difícil. — Meu pai resolve se intrometer na conversa. — Nunca pensou em estudar fora?

— Sim, já pensei. Mas ainda não vejo em outro país.

— O Rafael ainda não sabe o que vai cursar, além das aulas, você podia dar uns conselhos sobre futuro para ele.

Minha mãe lança o olhar bravo para o meu pai, me remexo na cadeira buscando, inutilmente, uma posição agradável. É impossível não perceber a mudança no ambiente.

— Se ele quiser, posso dar conselhos, com certeza. E você, senhor, trabalha com o que?

— Daniel está bom. Trabalho com ações, faço parte de uma equipe especializada em corretagem em um banco. E seus pais?

— Minha mãe é fundadora de uma startup e sócia na empresa do meu avô e meu pai é diretor de desenho e criação de uma marca de roupas.  

Depois disso, a conversa volta a ser sobre vestibular e vida adulta. Meu pai não solta mais nenhuma indireta para mim ou cita meu nome, a conversa fica entre meus pais e Elena. Fico quieto, observando. Daniel parece até outra pessoa. Quando volto a prestar atenção, Elena e meu pai falam sobre música e meu pai a questiona sobre as tatuagens.

O nervosismo que se fazia presente em Elena foi embora a muito tempo. Agora, ela está muito confortável. Até demais.

— Quando fez a primeira? — indaga, apontando para o braço esquerdo e quase fechado de desenhos.

— Com dezesseis anos. — Indicando a tatuagem. A Medusa que fica no interior do antebraço esquerdo.

— Tenho uma quase igual a sua, não a Medusa, mas o bracelete de espinhos.

É nesse momento que meu pai ergue a manga da camiseta preta que usa e mostra uma tatuagem de espinhos fazendo a volta no topo do seu braço, quase chegando no ombro.

Chocado, observo o desenho.  

— Foi uma época rebelde, mas não tenho vontade de apagar, tenho mais nas costas. — Explica.

Meu pai não é de andar sem camiseta pela casa, nem quando vamos na praia, ele tira. Não lembro de ter visto as tatuagens antes, nem por foto.

A falta de proximidade também tem papel fundamental nessa descoberta. Ele nunca foi de compartilhar comigo sobre a adolescência ou quando estava na faculdade e agora despeja em cima de Elena histórias e mais histórias sobre a sua juventude.  

Um sentimento ruim começa a se formar no meu peito. Ele inicia no coração, invade os pulmões e alcança a corrente sanguínea. O sangue contaminado pelo ciúmes percorre todo o meu corpo. Enchendo os outros órgãos com a sensação de raiva e abandono. Nunca quis trocar de lugar com ninguém em toda a minha vida, mas nesse momento, nesse maldito momento, eu queria ser Elena, estar sentada no lugar dela, conversando com meu pai sobre música, tatuagens e histórias. Observando-o rir de uma história contada por Elena, minha vontade é de sair da mesa, de despejar em cima dele todo o sangue ruim que percorre meu corpo, me adoecendo e que me torna uma pessoa invejosa.

Se fosse como ela, você me notaria?

Deve ser isso que falta em mim, um pouco de rebeldia.

Minha mãe deixa a mesa falando que vai pegar a sobremesa.  

— Meu pai chegou na delegacia muito puto, quase fiquei sem carro por causa daquele imbecil. Ele queria me processar, acredita? Sendo que o errado era ele.

Volto a prestar atenção na conversa e Elena está no meio de um relato emocionante sobre uma das suas inúmeras brigas de trânsito.  

O assunto cessa assim que minha mãe coloca sobre a mesa duas tortas, uma de morango e outra limão. Meu pai e Elena vão em direção a torta de limão.

VAI TOMAR NO CU!!!!

NÃO É POSSÍVEL QUE ELA GOSTE DA MESMA TORTA QUE ELE!!

Puto, corto um pedaço de torta de morango para minha mãe e outra para mim. Ela conversou bastante com Elena, a grande visita de hoje.  

— Não sei como conseguem comer torta de limão, só faço porque Daniel gosta.  

— Não sou chegada a nada muito doce, acho que é por isso que gosto tanto de torta de limão.

Corto um pedaço da torta com muito mais força que o necessário, fazendo um som estridente surgir do raspar do ferro da colher no prato. Finalmente, tenho as atenções voltadas novamente para mim.

— Ficou tão quieto durante o jantar, filho.  

— Não quis interromper o assunto. — Minha mãe estranha o meu tom, sei que soei um pouco rude, mas quem liga.

Parecia que nem estava aqui, como se fosse a porra de um fantasma.

— Você não interrompe nada, Rafael. — Devolve minha mãe no mesmo tom que eu.  

Elena me olha de esguelha, não compreendendo o meu comportamento.  

— Preciso ir. — diz Elena, quebrando o clima ruim que se instaurou na sala depois da minha fala.

— Muito obrigada pelo jantar e pela recepção, estava tudo maravilhoso!  

Após uma série de despedidas e a promessa de voltar outra vez, Elena e eu deixamos a casa. Do lado de fora, ela apoia no carro e pergunta:

— Tá tudo bem?

Não, não está.  

Não consegue ver que teve tudo o que sempre quis do meu pai. Toda a atenção e histórias.

— Tá sim, só estou um pouco cansado.  

Ela confirma com um movimento. Não sei se entendeu ou viu algo por trás das minhas palavras.  

— Tchau, Rafael.  

Elena se aproxima de mim e beija meu rosto.

— Tchau, Elena.  

De dentro do carro acena para mim.  

E sai com o carro, me deixando sozinho na rua.

A física entre nós [CONCLUÍDO]Donde viven las historias. Descúbrelo ahora