A primavera que habita em nós

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O golpe definitivo aconteceu quando passei dois meses cercada pelas paredes brancas. O vento frio de outono adentrava a janela quando entraram pela porta e me disseram que algo precisava ser feito ou eu cairia como as folhas outonais. Todas elas caíram naquele outono, mas, felizmente, eu permaneci.

Permanecer, entretanto, era como correr contra o tempo e eu tinha pouquíssimo tempo contra o qual correr. Então, no outono seguinte, mesmo que incapaz de apenas desistir, senti que não resistiria ao vento que me balançaria outra vez quando o outono chegasse.

Na primeira vez que ouvi falar sobre você meu dia ganhou mais uma nuance triste. As enfermeiras se entreolhavam com a compaixão marejando-lhes os olhos e o pouco que cochicharam perto de mim te definiu como uma jovem de vinte e dois anos que tinha dado entrada no hospital mais cedo após um acidente grave. Desejei que a próxima notícia sobre você que chegasse até mim fosse boa, porque era disso que eu me alimentava. Devorava vorazmente as boas histórias que habitavam aqueles corredores enquanto esperava a próxima página da minha ser escrita, mesmo que o sentimento fosse muito mais parecido com medo do que com expectativa ou esperança.

A próxima vez que ouvi falar sobre você me fez perder o pouco fôlego que eu ainda tinha. Sua cirurgia tinha sido longa e complicada e você não estava reagindo bem. Nos dias que se seguiram, não consegui te esquecer, mesmo que houvesse outras dezenas de pessoas doentes e em péssimas condições cujas histórias chegavam a mim nos corredores, e nunca entendi exatamente o porquê. Talvez porque tínhamos quase a mesma idade e sua recuperação era uma pequena ilha de esperança no oceano de insegurança e medo em que eu estava me afogando.

Levou três dias até que falassem novamente de você. Dessa vez, não foram cochichos. Vieram até o meu quarto e me contaram que uma garota de vinte e dois anos havia tido morte cerebral após sofrer um acidente há quatro dias. Eu nunca tinha visto seu rosto, muito menos sabia seu nome naquele momento, mas doeu como se eu te conhecesse. Então, disseram que você e eu éramos compatíveis e, por isso, receberia seus pulmões. Nenhuma outra frase teve um peso tão grande sobre mim.

As brisas outonais vieram e balançaram-me, mas eu resisti e devo tudo a você.

O processo foi rápido, mesmo que a cirurgia tenha durado horas. Conforme a recuperação acontecia, o outono deu lugar ao inverno e as coisas foram difíceis antes da primavera chegar, mas elas sobreviveram e eu desabrochei como as flores estavam fazendo quando respirei o frescor primaveril no lado de fora do hospital.

Por isso, precisei te escrever. Doeu saber que você tinha partido mesmo que isso significasse viver e não sou capaz de descrever o quão grata sou e o quanto gostaria de ter te conhecido.

Nos meses em que passei pela recuperação, ficava me perguntando qual era sua cor favorita ou quais livros você gostava de ler, quais filmes te faziam rir e quais sonhos habitavam seu coração. Então, uma das enfermeiras me contou que sua família tinha enviado uma carta para mim que haviam encontrado no seu quarto endereçada à pessoa que recebesse algum órgão seu um dia.

Encontrei as respostas que nunca achei que teria e chorei como nunca tinha chorado ao ler sobre a vida da garota que salvou a minha vida. Você era uma pessoa incrível e cheia de sonhos, prestes a mudar o mundo com as coisas incríveis que faria. Nossas semelhanças iam muito além do tipo sanguíneo e teríamos sido boas amigas. Contudo, nossa vida decidiu se cruzar quando essa possibilidade já não existia. Você estava no último dia da sua vida quando o primeiro novo dia da minha estava começando.

Você não pôde realizar os seus sonhos e mudar o mundo como sempre desejou, mas você mudou o meu mundo e me deu a chance de iniciar um novo ciclo. Não acredito que possa expressar a extensão da minha gratidão, mas agradeço, Viviane, do fundo do meu coração e com todo o ar que há em nossos pulmões. As estações vão passar, mas a primavera que habita em nós permanecerá.

Com amor,
Maya.

A senhora enxugou as lágrimas que escorriam por suas bochechas, impossibilitada de evitar o sorriso que insistia em surgir

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A senhora enxugou as lágrimas que escorriam por suas bochechas, impossibilitada de evitar o sorriso que insistia em surgir. Viviane estava viva, mesmo que não pudesse tê-la ao seu lado, e, pela primeira vez desde que sua filha partiu, o mundo lá fora tinha as cores mais lindas que já tinha visto. A primavera cuja brisa tocava-lhe o rosto tinha as cores de um novo início.

 A primavera cuja brisa tocava-lhe o rosto tinha as cores de um novo início

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Conto concluído contendo 1171 palavras.


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