Capítulo 02 - Um Novo Lar

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 Quando Sinésio se aproximava da porta do templo escondido dos Filhos de Vênus, a chuva já caía há algumas horas. Estava próximo de amanhecer, mas os céus tempestuosos faziam parecer que ainda era mais noite do que dia. Os trovões eram raros e calmos, mas relembravam que a chuva ainda continuaria por bastante tempo. Sua carroça levava apenas alguns mantimentos e o baú que fora buscar na casa de Hipátia, protegidos da chuva por pedaços de couro jogados sobre eles. Ele também usava uma capa de couro para se proteger da chuva, mas não cobriu a cabeça. Preferia que a chuva caísse sobre ela, molhasse seus longos cabelos castanhos e escorresse pelo seu rosto. Assim, pensou ele, suas lágrimas se misturariam às gotas de chuva e seu pranto seria lavado e ocultado por ela.

Ao chegar lá, uma pequena greta do portão foi brevemente aberta e fechada para que olhos do lado de dentro reconhecessem quem estava do lado de fora. Segundos depois o portão se abriu e, por detrás dele, Sinésio pôde ver dois guardas, um de cada lado do portão. Suas vestes eram mantos cor de vinho, com capuzes pretos que cobriam quase totalmente seus rostos. Cada um deles carregava uma espada embainhada no cinto e suas mãos estavam postas à frente do corpo, apoiadas uma sobre a outra. Atrás deles, no centro, estava Agnes. Ela vestia uma armadura leve também cor de vinho, embora mais sutil, marcada e escurecida do que as longas vestes dos guardas. Ela sinalizou aos guardas que fossem descarregar o que estava na carroça, o que foi obedecido silenciosa e imediatamente. Pediu então que o bispo entrasse logo e se protegesse da chuva. O portão se fechou e Agnes levou Sinésio até o salão central do templo.

— Serei breve, Sinésio. A presença de um bispo aqui é algo que normalmente não me agradaria. Conheci muitos dos seus que já nos perseguiram e nos perseguem, e não abriria estes portões para nenhum de vocês em hipótese alguma. No entanto, sei que vem aqui a pedido de Hipátia e, por isso, o recebemos. Mas devo perguntar: quem mais sabe que está aqui e o que veio trazer?

— Você deve ser Agnes. Orestes me disse que seria você a me receber. Ninguém além dele sabe que estou aqui e ninguém mais saberá. Trago comigo um baú que Hipátia protegeu até o final de seus dias. Eu mesmo fui buscá-lo em sua casa. Seu último desejo era que fosse entregue a este lugar. Não o abri, nem mesmo tentei, mas pude ver que possui uma fechadura de formato que nunca vi antes.

Um dos guardas então colocou o baú em cima da mesa do salão principal. Não era um baú muito grande, nem muito pesado, mas parecia ser bastante resistente, estava muito bem cuidado e sua beleza indicava que tivera sido feito por um dedicado e talensoso artesão. Era de madeira, mas esta era revestida na maior parte por um couro preto fosco. A fechadura, que Sinésio observou, era uma fenda no formato da letra V posicionada no centro da parte frontal do baú, envolta por um triângulo cor de vinho talhado e pintado na madeira, que acompanhava o formato da letra e tornava o baú ainda mais belo.

— Já faz muito tempo que não vejo um destes. – disse Agnes, percorrendo as mãos pelo baú. Ela sabia exatamente o que era aquele objeto.

Aquele era um antigo baú da ordem dos Filhos de Vênus. As poucas unidades já feitas foram projetadas e construídas por antigos membros que viram da perseguição que sofriam surgir a necessidade de manter seguros seus escritos, planos ou mesmo qualquer documento que os ligassem à sua ordem ou mesmo às suas raízes pagãs. Os Filhos de Vênus sempre foram engenhosos para fugir da perseguição e para protegerem uns aos outros do cruel Império Romano. Suas vidas e as vidas de quem amavam dependiam disso.

Agnes e Sinésio observavam aquele baú em março de 415, dias após a morte de Hipátia. A perseguição direta, severa e institucionalizada aos pagãos, no entanto, já acontecia há décadas. Por exemplo, durante o governo de Constâncio II – um dos filhos de Constantino, o Grande – sobre o Império Romano do Oriente, de 337 a 361, a intolerância ao paganismo se fortificou. De fato, em 20 de fevereiro de 356, Constâncio adicionou ao Código Teodosiano – conjunto de leis do Império Romano – a lei 16.10.6, que ordenava a pena capital a qualquer um que fosse culpado do crime de idolatria – estendendo uma lei anterior que já aplicava a pena de morte a rituais pagãos envolvendo sacrifício. Portanto, o simples fato de possuir e adorar a uma estátua de Vênus poderia condenar alguém à morte.

Os Escritos de VênusWhere stories live. Discover now