Capítulo 01 - Dor e Fúria

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 — Como está o menino? Comeu alguma coisa desta vez?

— Não. Ele continua calado e sequer tocou em seu prato. Não sei mais o que fazer, Omar! Me parte o coração vê-lo assim...

— Eu sei, Sara. Mal consigo vê-lo sem marejar os olhos, também... – dizia Omar enquanto segurava Sara em seus braços e acalentava seu silencioso pranto.

— E por que Orestes ainda não veio? E nem mesmo mandou que viesse aquele bispo amigo de Hipátia? Justo agora que o menino precisa tanto de alguém que os conhecia!

— Orestes não pode deixar seu palácio para visitar nosso templo imediatamente após sua conselheira ter sido assassinada. Mas Agnes nos disse que ele ordenou que o bispo fosse antes buscar algo que Hipátia, em seus últimos desejos, queria que nos fosse entregue. Devem chegar durante a manhã. Trouxeram o menino primeiro pois mantê-lo seguro era o mais importante.

— Eu só queria que ele comesse um pouco, pelo menos. Ele está tão pálido e frágil...

— Eu sei, Sara. Eu sei. – Omar já não conseguia segurar as lágrimas que queriam escorrer. Sara e ele se prontificaram a cuidar de Cícero desde que soldados de Orestes o trouxeram para ser protegido pelos Filhos de Vênus. Os dois sequer conheciam o menino e, desde que o viram pela primeira vez, ele não havia dito palavra alguma a ninguém. Mas seus corações tão cheios de empatia sofriam com um menino tão jovem que acabara de perder tudo o que tinha. Cícero havia perdido, num só dia, toda a nova vida que ganhou desde que Hipátia o resgatou naquele navio. Seus livros favoritos, sua casa, a biblioteca e, acima de tudo, a segunda mãe que teve. Uma mãe sábia, protetora e afetuosa.

*****

No dia e na hora da morte de Hipátia, Cícero já estava em casa. Era comum que ele trouxesse alguns livros da biblioteca para casa e lá os devorava durante horas. Naquele dia, havia selecionado uma pequena parte da produção de Hipócrates, um grande médico da antiguidade. Cícero também tinha profundo interesse pela medicina, pelos estudos da anatomia e pelo modo como a medicina hipocrática se dedicava a tratar com gentileza seus pacientes. Vivia dizendo a Hipátia que, quando crescesse, queria exercer também o ofício de médico, pois ajudar os enfermos era uma das atividades mais honrosas que um homem poderia praticar.

Enquanto lia os textos hipocráticos, Cícero ouviu alguém bater na porta. A regra da casa era que, enquanto estivesse sozinho, não abrisse a porta para ninguém – e, obediente como era, assim ele o fazia. Não houve uma segunda batida. Ouviu uma voz masculina murmurar algo lá fora e, então, um grave estrondo. Seguido dele, um seco barulho um pouco menos intenso e um pequeno tremor no chão. A porta havia sido derrubada. Cícero já ouviu uma porta ser derrubada uma vez, quando ainda era criança. Foi no dia em bandidos invadiram sua casa e assasinaram seus pais. Instintivamente, lhe veio a mesma reação que tivera naquela vez: correu para debaixo da cama, se escondeu e tapou sua própria boca para que não emitisse nenhum ruído.
Olhando por debaixo da cama, Cícero segurava até o ritmo da respiração. Suas mãos tremiam, seus olhos lacrimejavam e era quase ensurdecedor ouvir seu coração que batia forte e acelerado, como o galope de um cavalo, dentro de seu próprio peito. Viu então dois dos invasores passarem pelo corredor de seu quarto. Reconheceu suas sandálias e o vermelho vivo do escudo que um deles carregava: eram soldados romanos. Vindo logo atrás deles, e entrando em seu quarto, o terceiro invasor não vestia as mesmas sandálias, nem carregava escudo. Ele se aproximou da cama, fazendo o coração do menino silenciar-se de pavor. O vermelho nobre escuro de suas vestes longas foi a última coisa que viu antes de seu rosto, quando o invasor abaixou-se e o viu.

— Cícero, venha cá! Não temos tempo. Você precisa vir comigo! – suplicou, estendendo sua mão ao menino. Cícero conhecia Orestes das raras vezes em que se viam na biblioteca, mas sabia que era um amigo de Hipátia e alguém em quem poderia confiar.

Os Escritos de VênusWhere stories live. Discover now