Amor é um Mito
Ó Céu estrelado
Uma vez separado
Do solo sagrado
Para jamais voltar
Teu amor com Terra tudo era
Menos amor
Pois ainda não havia o amar
Tua força e vigor
Causas de tanta dor
Fizeram o futuro tempo, Saturno, conspirar
Da amputação espaço se fez
E pela primeira vez
Terra pôde descansar
Linda e frágil como pluma
Surgindo em meio à espuma
Vênus nasceu sobre o mar
"Bravo!", celebra o sábio
Pois é ela quem nasce: O Amor
"Céus!", protesta o tolo
Pois é ele quem nasce: O Sofrer
*****
Minha cara Hipátia,
Fico grato que tenha escrito a mim para consultar sobre este poema. De fato, o manuscrito que me enviou parece mesmo bastante antigo, mas não consegui identificar nada que sugerisse seu local de origem e muito menos que indicasse sua autoria. Trata-se, no entanto, de um poema consideravelmente interessante. Explicarei, nas próximas linhas, por que assim penso. Antes, no entanto, já adianto que o que há de interessante neste poema não é tanto a forma, visto que é bastante simples e até mesmo um pouco livre, e nem mesmo, de certa forma, seu conteúdo. O que resta, então, poderia me perguntar? Bom, o contexto. Embora não siga uma forma muito difícil de escrever, tampouco tem palavras ou sentenças muito complexas, a beleza deste poema, para mim, está precisamente naquilo que não está nele. Naquilo que fica subentendido e que, portanto, deve ser de conhecimento tanto do escritor quanto do leitor para que se comunique alguma coisa.
A primeira característica que quero destacar é que este poema é sobre Teogonia, de Hesíodo ou, mais precisamente, sobre todos os mitos de origem grega que foram de inspiração para Hesíodo em sua compilação. Este poema é sobre dois grandes momentos do saber sobre os deuses, duas grandes origens no panteão originalmente grego e duas explicações para fatos distintos da realidade. Perceba como há destaque na grafia para as seguintes palavras: Céu, Terra, Saturno e Vênus. As duas primeiras podem passar desapercebidas, mas as duas últimas não deixam dúvidas de que o autor está se referindo aos deuses que possuem estes nomes. Chamando pelos nomes romanos, Céu é Urano, Terra é Gaia, Saturno é Cronos e Vênus é Afrodite.
Nos mitos, conta-se que Gaia e Urano copulavam quase que incessantemente desde que Gaia sozinha o concebeu. Ela o fez exatamente para isso, para que a cobrisse, mas não sabia que a luxúria de Urano seria futuramente causa de tanta dor e desconforto. Com ele, Gaia teve doze filhos – os doze titãs. No entanto, temendo o quão poderosos poderiam se tornar seus doze filhos, Urano não permitia que Gaia os parisse e, portanto, todos os doze titãs viviam nas profundezas do ventre da Terra. Não é de se surpreender que tal impedimento de dar à luz a doze filhos causava tanta dor a Gaia. Quando Céu amava Terra sem amor, Terra sofria.
Então, não suportando mais a dor de não poder pari-los, Gaia pediu aos doze titãs para que se vingassem do pai. Onze deles negaram o pedido. Cronos, o mais novo, fez diferente. Não aceitaria que a luxúria do pai continuasse sendo causa de tanta dor a sua mãe. Gaia e Nix (a deusa que representava a noite) fizeram então uma foice, que foi entregue a Cronos. Ele então se escondeu e esperou pela chegada do pai. Quando Céu foi então cobrir Terra novamente, Saturno executou sua conspiração: atacou e castrou o pai. Urano, sentindo tamanha dor, se separou de Gaia e está até hoje onde o vemos: no céu.
Perceba que as primeiras quatro estrofes do poema condensam de forma bastante simples, embora ainda enigmática para quem não conhece mitologia, tudo o que acabo de escrever. A primeira estrofe introduz o tema. A segunda representa a essência violenta do amor de Urano – enquanto que já sugere que, até então, o amor, Vênus, não havia nascido. A terceira menciona a conspiração, que então tem seu fim na quarta estrofe.
Um detalhe interessante é o verso "Da amputação espaço se fez". Este momento na mitologia – a amputação de Urano – não é apenas o desfecho de uma conspiração de mãe e filho contra pai. Na verdade, este é o início mitológico do espaço e do tempo. O espaço onde estamos surgiu, na mitologia, depois que Céu se separou de Terra. O espaço é basicamente tudo o que hoje há entre os dois. O tempo, por sua vez, inicia junto do espaço, o que permite que nós, seres temporais, possamos existir. Não por coincidência, Cronos é justamente o Deus do Tempo. Foi ele quem iniciou o relógio. É ele o responsável por haver algo além da eternidade – eternidade essa na qual os deuses vivem.
A quinta estrofe remete a uma das origens mitológicas de Vênus. Segundo esta versão, Vênus teria nascido da espuma que se formou no mar quando Saturno jogou nas águas o que tivera amputado de seu pai. Então, da espuma do mar e da amputação, o Amor nasceu. Eis aí o motivo do título ser "Amor é um Mito". De fato, o amor é um mito. Para a mitologia, não há diferença entre Vênus e o amor. Ela é o amor. É a maneira que encontraram para explicá-lo e, portanto, tudo o que o amor é também é Vênus. Houve, inclusive, quem já argumentou que haveria mais de uma deusa, já que existem tantos amores diferentes. Eros, philia, ágape, caritas. O amor é tudo isso e, assim, a deusa também é.
Espero que minha contribuição sobre este escrito lhe seja útil e que sua busca por mais textos sobre Vênus seja proveitosa. Deixo, por último, uma provocação própria: será mesmo sábio aquele que celebra o nascimento do amor? E é tão tolo assim aquele que compreende o amor como sendo fonte de sofrer?
Paladas de Alexandria
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Os Escritos de Vênus
Historical FictionUma história e uma coleção de escritos sobre a maior das deusas, este livro é, acima de tudo, uma tentativa dedicada de ensinar e, mais especialmente, de aprender sobre o amor. A história começa quando Hipátia de Alexandria passa a coletar escritos...