Escrito 01 - Vênus e o Baú

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Uma epifania. Óbvia, como todas as descobertas importantes. E, igualmente a todas as descobertas importantes, é sobre o amor.

        Como pude regar por tanto tempo plantas cujos frutos eram minha própria negação? O que faz alguém cultivar em si uma força que é contrária e extinguidora da própria motriz que a criou? Basta! Não carregarei mais em mim esta fraqueza que é de vocês. Ignorantes de si, insensíveis aos outros e peças quebradas de uma máquina que só engendra decepções. Que eu jamais desconheça meus próprios erros e em dia nenhum deixe de admiti-los e extrair deles o conhecimento que puder. Mas que eu também, a partir deste dia, não lhes dê mais tanto perdão que nem a mim mesmo daria. Que, deste momento em diante, não lhes esconda nunca mais atrás de imagens frágeis das quais não se pede que vivam por seus próprios passos. Suportem o destino que seguiram por seus próprios desejos e vontades. Antes de colocá-los sob o domo intransponível de minha empatia, por que nunca exijo nem mesmo um simples cobertor feito das suas? Por que me contento em carregar quase sozinho, senão totalmente só, este baú pesado de memórias e promessas que é o amor?

        Pois sim, o amor é como um baú. Um baú de paredes, chão e tampo maciços, feitos da madeira mais forte e do metal mais pesado que Vênus foi capaz de encontrar. Mas neste baú, sob encanto máximo da deusa, nenhum ser guardará riqueza alguma, nem pedra preciosa, nem mapa de seus tesouros ou arte de valor imensurável. Tudo o que Vênus nos permite guardar em cada baú desses são memórias e promessas, pois se há algo a se guardar de um amor, estes são seu passado e seu futuro. Tal ironia é a maior de todas as incontáveis já proferidas e materializadas pelos deuses. Um baú de um peso tão enorme, de formas tão belas e magia da mais divina, feito de forma que só possa carregar algo que jamais será matéria. Memórias e promessas não existem no tempo, e muito menos podem ser guardadas num baú. Existem em nossas mentes sem ser substância e sem existir no agora, que é tudo que temos.

        A alguns pode parecer que Vênus nos prega uma peça e nos dá um quebra-cabeças que jamais resolveremos, e que mesmo assim continuaremos tentando enquanto houver ar nos pulmões e pensar nos cérebros. Mas não se engane com tal visão rasa e desrespeitosa, pois a mais bela das deusas não é mera atrevida burlesca e nem se diverte com o sofrimento humano. Sua sabedoria quanto ao amor é infinita e bondosa. Sim, seu baú e seu feitiço são feitos com véu de mistério e ocultam a verdade de todos aqueles que não a procurarem com todo seu ser – e não é assim que todos os deuses o são?. Porém, tal mistério não é artifício sarcástico em busca de fazer rir a própria deusa sempre que um de nós tenta em vão carregar este baú ou enchê-lo com suas riquezas, com suas verdades e com seus medos. Não! Não abram o baú! Não veem que jamais tirarão de vossos corações aquilo que o baú aceita? Guardem para si! Fechem o baú! O que lhes restam? Olhem atentamente... Tirem de seus olhos a cor do desejo de encher o baú e vejam o que lhes sobra. Ele é maciço, pesado, não lhes deu o direito de guardar seja lá o que pretenderam, nem mesmo representa o que poderiam ter guardado, pois isso vocês já possuem. Mas ele continua na frente de vossos olhos. E, não importa o quanto corram, o baú continuará aí sempre que um amor ritmar o bater de seus corações.

        O que nenhum de vocês parece ver é que este baú não serve para guardar, mas para ser carregado. Este baú que a vida toda esteve na frente de vossos olhos e que, mesmo assim, seus olhos se negaram a perceber que ele não possuía somente uma alça. Este que por tanto tempo vocês tentaram arrastá-lo sozinhos ou com menos ajuda – ou simplesmente o ignoraram – não foi feito para ser levado a passos sós. Entendem, finalmente, o maior mistério de Vênus? Pois já deveríamos ter aprendido há muito mais tempo que seu maior presente e razão de nosso maior martírio, por não entendê-lo, precisa ser carregado em conjunto. E mesmo que carreguemos em conjunto, não podemos carregá-lo por desejo às fortunas que ele protege, pois tal baú estará sempre vazio, não importa o que façamos.

        Para carregá-lo, ainda precisaremos de ajuda correspondida em mesmo nível, que não nos faz peso e nem nos carrega sozinhos. Por que é então que nossa deusa resolveu nos entregar tal objeto, aparentemente ilógico, cuja existência não se dá por valor, utilidade ou beleza? Ora, mas é claro que para testar a nós mesmos e nossos amores. Para ser carregado! Para ser carregado, ora! Pois só o amor poderia nos fazer carregar um baú enorme e pesado que jamais poderá guardar nada. O que a deusa tenta nos ensinar é que o amor não é algo que se guarda, mas que se carrega. E por que carregamos? Porque não carregamos sozinhos. Porque vemos quem carrega-o conosco. Porque sentimos que o que importa está no carregar. E, por tudo isso, carregar já basta.

Os Escritos de VênusWhere stories live. Discover now