Prólogo

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        — Cícero! Cícero, onde está você? – os gritos alegres de Hipátia eram as primeiras palavras daquele dia a reverberarem nas paredes e colunas da grande Biblioteca de Alexandria. Construída para ser a maior cidadela do conhecimento de todo o mundo, era tão vasta e de paredes tão altas que ao gritar era possível ouvir duas ou mais vezes sua própria voz a ecoar, dependendo de onde estivesse. De um dos corredores onde seus gritos ecoavam, veio a correr o menino, com um sorriso no rosto e um abraço apertado assim que chegou até ela.

        — Veja, Hipátia, terminei mais um! – e chacoalhava com euforia um manuscrito que vinha em suas mãos. Logo Hipátia reconheceu que se tratava do manuscrito de Eratóstenes, no qual calculara com precisão a circunferência da Terra. Matemática e astrônoma que era, este era um dos escritos da biblioteca pelos quais Hipátia mais tinha apreço.

        — Ah, terminou? E é sobre o quê, então? Me explique! – e tomou rapidamente o papiro da mão do menino, com um sorriso provocador de quem estava a testá-lo ali mesmo.
Cícero vestiu na hora um olhar sério e compenetrado, embora contendo certa vontade de rir, ajeitou a postura e começou a circular Hipátia, simulando os diversos pensadores que circulavam pela biblioteca sempre a palestrar daquela forma para seus alunos:
        — Neste manuscrito, Eratóstenes nos elucida como foi seu experimento e seu cálculo para obter a circunferência da Terra. Ele pediu para que alguém contasse a distância entre Siena e Alexandria, fez um teste com varetas fincadas no chão para encontrar a angulação entre as duas cidades e, depois, usou de uma relação trigonométrica para calcular a circunferência da terra: duzentos e cinquenta e dois mil estádios!
        — Menino, se continuar com este cérebro de Platão e esta língua de sofista, vai tirar meu posto nesta biblioteca em pouco tempo! – disse Hipátia, dando um beijo na testa do menino que logo saíra correndo a dizer animado qual seria o próximo que leria.

        Hipátia já ouvia de longe os passos que se aproximavam, mas foi só quando Cícero saiu a correr em busca das prateleiras da biblioteca que ela ouviu a calma e doce voz de Sinésio, seu velho aluno e amigo:
        — Nem parece aquele garoto medroso e arredio que encontrara no navio, Hipátia. Cícero será um grande homem. E o mérito é todo seu.
        — Ora, Sinésio, eu só faço por ele o que o amor me compele. Se ele, como nós, também ama o saber, é mérito dele. – disse Hipátia, emendando a fala a um fraterno abraço em Sinésio.
        

        O navio que Sinésio citava era o início da história de Cícero em Alexandria e, pelas bênçãos dos deuses, uma reviravolta na triste história do menino. Cícero, este que euforicamente estava a correr pela gigante biblioteca a procura de novos e diversos conhecimentos, era um garoto de 13 anos que já havia iniciado os estudos em quase todas as áreas do conhecimento humano, oportunidade e incentivo que sempre vieram de Hipátia. Ele se interessava genuinamente pelo aprender, se alegrava imensamente com o ensinar e via em Hipátia e naquela biblioteca onde vivia as duas maiores fontes de aprendizado, segurança e felicidade de sua vida. Porém, sua vida nem sempre foi assim, rodeada de escritos e norteada em sua amorosa e sábia protetora.

        Cícero nasceu em uma pequena cidade portuária, filho único numa família pagã de origem pobre. Seu pai trabalhava no porto, sua mãe cuidava da casa e dos poucos animais que conseguiam criar para garantir a subsistência da família. Seu pai costumava contar-lhe, quase sempre a pedido do menino, histórias de todos os navios que passavam pelo porto. De onde eram, o que traziam e que tipo de pessoas vinham nele. Especialmente as pessoas. Cícero se maravilhava com como as pessoas podiam ser tão diferentes umas das outras, com maneiras de ser e agir tão distintas e únicas. Já sua mãe, muito fiel a seus deuses, ensinou a Cícero tudo o que sabia sobre eles.

        Aos seis anos de idade, Cícero viu seus pais serem mortos por bandidos que invadiram sua casa. Escondido embaixo da cama, o menino assistiu a tudo, mas não foi visto pelos invasores. Eles pegaram o que puderam, jogaram em sacos e saíram, como se nada tivesse acontecido. Cícero não demorou muito para sair, também. Em meio a tudo aquilo, a única reação do garoto foi correr. Correu até o porto onde sempre ia com seu pai, e lembrou-se que logo um navio partiria. Sorrateiro, o menino entrou em um dos barcos e lá se escondeu e comeu das sobras até chegarem em Alexandria.

Os Escritos de VênusWhere stories live. Discover now