Capítulo I

49.3K 4.4K 1.9K
                                    

Acordar cedo em São Petersburgo no inverno podia ser uma das piores coisas do mundo, principalmente quando se dormia em um sótão muito gelado. Anastásia Tchecova desceu as escadas que dava na cozinha e começou a preparar o café da manhã da família. Nunca havia se sentido como parte daquela casa, e ninguém fazia muita questão de fazê-la se sentir.

Anastásia com seus dezessete anos, tinha uma tez muito pálida, olhos azuis profundos, cabelos negros como a noite, traços finos, como se fossem feitos por algum pintor. Sua beleza era diferente, mas pouco notável, pois fazia questão de se manter escondida em roupas horríveis e cortes de cabelo medonhos. Fora que sua mãe adotiva fazia questão de dizer que ela era feia, sem nenhum atrativo, e que seria bastante difícil conseguir um casamento.

No início, quando as ofensas começaram, se importava bastante, pois aquelas palavras doíam muito, principalmente alguém que deveria ser sua mãe. Mas aprendeu a não absorver aquelas palavras, Nádia não merecia sua mágoa, nem qualquer sentimento além de pena.

Colocou a garrafa de vodca que seu pai tanto gostava de tomar, a panela com borshch, os pratos e talheres em cima mesa, e voltou para seu sótão, como sempre fazia quando terminava de servi-los. Não se importava em fazer aquelas coisas, o problema é quando a excluíam da primeira refeição do dia.

Sentiu suas lágrimas descerem pelo seu rosto frio, e pegou o broche que ela guardava em segredo debaixo de uma tábua solta. Afinal, se algum dos Tchecov tivesse conhecimento daquela preciosidade, roubariam dela e venderiam assim como fizeram com seu colar. Nunca esqueceu o tapa que ganhou no rosto por esconder aquela joia.

Arrumou sua cama, pegou as roupas quentes que usaria para trabalhar na fábrica, e mais uma vez desceu pelas escadas e foi para o pequeno banheiro da casa. Diante do pequeno espelho que estava quebrado, devido um surto da sua irmã, perguntou-se o que havia feito de tão grave para a família adotiva não gostar dela. Jamais pediu para ninguém a resgatar quase morta ensanguentada jogada na floresta e permanecer com ela, pois poderiam muito bem tê-la enviado para um orfanato.

Parou de pensar em tais coisas e começou a tomar seu banho quase congelando de frio, pois sua mãe adotiva não permitia que ela esquentasse a água para o banho, mesmo que só uma vez por semana. Afirmava que gastaria lenha sem necessidade, que ficasse sem tomar banho. Mas Anastásia gostava do hábito de lavar-se, era como se tivesse tirando todas coisas ruins do corpo. Ao menos gostava de pensar assim.

Quando Anastásia estava pronta, foi para a cozinha comer um pão velho que havia guardado para comer, e sua mãe a estava encarando com a expressão mais feia do que a de costume, seu pai bebia vodca como se bebesse água, e seus irmãos nada adoráveis brigavam para quem chegaria primeiro no emprego. Abaixou a cabeça, foi em direção ao armário e pegou seu pão. Estava mais duro que uma pedra, jurou ter quebrado o dente após a primeira mordida, mas foi apenas impressão.

— Não se encontra atrasada, Anastásia? — perguntou Nádia Tchecova.

— Não, senhora. — Anastásia limpou as migalhas de sua roupa.

— Deixe a menina comer pelo menos, Nádia. — Ygor disse bebendo mais um copo de vodca. — Afinal ela coloca mais dinheiro aqui em casa.

— Ela tinha que prestar para alguma coisa, não é mesmo? — Alena respondeu com o nariz empinado.

— Engraçado como ela é melhor do que você, Alena. — Daniel saiu em defesa de Anastásia, para surpresa da própria.

— Calem-se seus petulantes de merda! — Nádia gritou. — Anastásia vá para sua fábrica e só volte quando acabar seu expediente.

— Claro. — engoliu em seco. — Adeus.

Anastásia saiu para a grande nevasca e começou a andar lutando para não congelar e morrer. Ela amava seu nome, pelo menos no colar dela havia esse nome e Nádia supôs que seria seu verdadeiro nome. Ela nunca se lembrava do passado, nenhuma lembrança vinha, absolutamente nada, e isso era frustrante. Ela foi para a casa dos Tchecov com sete anos, em seu broche também havia sua data de nascimento: 10 de janeiro de 1901.

Como alguém não se lembra de qual lugar pertence? Perguntou-se com certa tristeza para si mesma, como sempre fazia.

Andava, andava e parecia não chegar ao seu destino; a fábrica Sukhov. Ela era responsável por cuidar dos pedidos de peixe para os melhores restaurantes de toda São Petersburgo.

Quando chegou na fábrica, foi direto para seu cubículo trabalhar. O dia seria longo e trabalhoso, queria ir embora para casa, mas não conseguia chamar aquilo de casa, seu coração se negava. Riu com deboche e seu gerente abriu a porta do seu cubículo e jogou mais pastas com papéis para serem preenchidos e enviados. Anastásia só estava ali por causa do salário, era pouco, ela sabia, mas dava para ajudar na casa onde vivia e guardar um pouco para fugir futuramente, quem sabe.

Saiu da fábrica às 9:00 da noite e foi para casa exausta. Já estava imaginando que teria que fazer jantar, lavar os pratos, arrumar a cozinha e só depois poderia dormir. Suspirou frustrada e chutou a neve.

Avistou um carro vindo em sua direção e saiu do caminho, tinha o símbolo da casa Bulganov, o símbolo do czar. O palácio imperial não fica muito longe da fábrica, era um belíssimo lugar. Quando podia, visitava a faixada do lugar, como se de alguma forma pertencesse aquele lugar. Sempre ria com aquele pensamento, mas parecia muito real.

Morria de curiosidade para ver a família imperial de perto, fazia muitos anos que eles não iam passar uma temporada em Peterhof. O czar havia se casado novamente, com uma princesa da Inglaterra, e toda a Rússia ficou feliz, mas nunca esqueceram a czarina Sasha, que foi brutalmente assassinada. E havia histórias sobre o desaparecimento da filha mais nova, que por coincidência, também se chamava Anastásia, e todos acreditavam que estava morta.

Quando chegou em casa, começou a realizar as obrigações que fazia todos os dias sem reclamar. Querendo ou não, aquelas pessoas haviam lhe oferecido teto quando ela mais precisava.

Respirou fundo, estava cansada de tudo.

E todos.

Na casa vizinha, estava Ivan Tchaikovsky observando a família Tchecov, a qual ele obrigou criarem a grã-duquesa Anastásia. Ele se perguntava todo dia o motivo de deixá-la viva, mas no fundo sabia que havia dois motivos: ver o sofrimento de Vladimir sem a filha, e toda vez que olhava aqueles olhos azuis lembrava da única mulher que amou na vida, Alexandra Bulganova.

Todos os dias acompanhava a rotina dela pela janela, ela não podia conhecê-lo ou saber da sua existência. Por sorte, a coronhada que tinha dado em sua cabeça surtiu o efeito da amnésia. Seria muito ruim se ela lembrasse da sua antiga vida, porque tentaria a todo custo fugir para os braços da sua verdadeira família. Algumas vezes ficou desconfiado se Anastásia não tinha recobrado sua memória, e estava fingindo para os Tchecov.

Mas ela sempre voltava pela noite.

Sempre.

Sabia que Nádia não a tratava bem, o que fortificava ainda mais a ideia de que ainda não tinha lembrado absolutamente nada do passado, porque ninguém em sã consciência ficaria sendo humilhada e maltratada em uma casa, sabendo que era da realeza.

Apesar de ordenar para Ygor que mandasse a maldita mulher dele parar com aquelas agressões descabidas, sempre ouvia os gritos dela contra a menina. Nádia era muito louca em saber de quem tratava a menina, e mesmo assim cometer tamanhas crueldades. Desejou muitas vezes pensou em intervir, porém não podia ser tão impulsivo.

Tirou da sua carteira de prata um cigarro e acendeu na vela que estava perto da janela.

Tragou bem o cigarro, soltando uma longa fumaça.

— Anastásia, Anastásia, seu nome significa ressurreição, acredito que seja isso que a salvou. — amassou o maço na mesa. — Porque não há outra explicação para que tenha sobrevivido e aguentado todas essas coisas nas quais é submetida. — deu uma risada. — Talvez eu tenha uma parcela de culpa no que esteja acontecendo em sua vida. O que diria Vladimir vendo a caçula sendo maltratada dessa forma? Com certeza ficaria enlouquecido. — tamborilou os dedos no vidro da janela. — Daria qualquer coisa para vê-lo sofrer.

Deu às costas para a janela, precisava dormir um pouco, antes de começar os frequentes pesadelos com Sasha.

A grã-duquesa perdidaWhere stories live. Discover now