Capítulo XII

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In the land of Gods and monsters I was an angel, looking to get fucked hard. God's dead. I said baby that's alright with me.

Gods and Monsters, Lana Del Rey

Quando dei por mim, tinha dormido. Continuava na exata mesma posição, com a cabeça encostada no peito quente de Ezra, com sua mão apoiada em meu braço. Seria um quadro bonito, para quem quer que entrasse no cômodo e olhasse. Parecia tudo tão calmo, tão puro, sem violência ou luxúria. Tão pouco demoníaco.
Um arrepio em meu braço mostrou que Ezra estava acordado. Não consegui impedir minha boca de falar.
- Por que é que você se tornou num demônio? – perguntei, me censurando, logo em seguida, porque, com certeza, minhas palavras acabariam com aquele momento tão perfeito. Estragara tudo.
Ele se moveu, junto a mim, e parou a mão que acariciava meu braço.
- O paraíso é um lago de mentiras e falsidades. – respondeu, mas, para meu espanto, não havia rancor ou, sequer, aborrecimento em sua voz.
- Mas é o paraíso.
Deu uma risada irônica. 
- E é demasiado valorizado.
- É para ser. É o prêmio para aqueles que foram bons na terra.
- Como se os anjos achassem os humanos seres dignos de partilharem seus refúgios.
Ergui-me no cotovelo para conseguir olhá-lo.
- O que quer dizer?
- Quero dizer, humanazinha, que o paraíso para onde vocês vão quando deixam a terra não é o mesmo que aquele onde os anjos habitam. – respondeu, levantando a mão para acariciar meu rosto. – Se você quer minha absoluta sinceridade, não tenho a mínima ideia para onde vão, apenas sei que não é para junto dos anjos.
- Como assim? – senti minhas sobrancelhas se enrugarem em interrogação.
- Em todos meus milênios como anjo, nunca vi um único humano lá em cima. Só comecei a ver humanos mortos no inferno.
- Então, o que é que acontece as almas boas que partem? – questionei.
Ezra abanou a cabeça.
- Deve ser outra das grandes invenções dos Serafins. – afirmou.
Voltei a me deitar junto a ele, mas ainda com aquele peso terrível que obrigava minha testa a franzir-se.
- Que outras invenções eles prepararam?
- A mais grave delas vai responder àquela pergunta que você fez e que iniciou esta conversa. O porquê de eu ter abandonado o paraíso…

Ezra’s POV
A hierarquia no céu é muito importante e deve ser seguida por todos, com pena de um corte de asas, que é o mesmo que condenar um anjo ao sofrimento eterno. Eu era um Querubim, tal como Lúcifer e Lucas, mas um Querubim a sério, e não como aqueles das gravuras, bebês de fralda e caracóis loiros. Os Querubins estão logo abaixo dos Serafins e logo acima dos Tronos, na hierarquia, o que propicia o conhecimento de muitos segredos do paraíso, e até guardamos a chave do Éden. Lucas, Lúcifer e eu éramos o trio maravilha dos céus, o trio negro. Andávamos sempre juntos e tudo o que fazíamos juntos saía bem. Ou, melhor, terrivelmente mal. Adorávamos fazer disparates, tínhamos um gosto particular por humanas e, sempre que podíamos, aproveitávamos. Éramos tão queridos por todos que deixavam passar esses deslizes, afinal, não causavam danos. Os anjos não conseguem se reproduzir, de qualquer dos modos.
Tudo parecia perfeito. Éramos os reis do paraíso. Ninguém tinha mão sobre nós. Éramos todo-poderosos. O que fez tudo mudar? Começou com uma ideia. Lúcifer sempre fora dono da imaginação mais fértil de nós três e, como tal, foi o primeiro a cogitar a opção. Em toda a hierarquia angélica, em todos os sete níveis, apenas os Serafins afirmavam ter visto Deus. Sim, o Senhor. O Lorde dos Céus. Os Serafins dizem vê-lo, falar com ele, conhecê-lo como a qualquer outro ser. Através deles, supostamente, Deus ordena, sem mostrar quaisquer outras provas da sua existência.
Foi numa noite, quando estávamos no mundo dos humanos, na terra, acompanhados por três mulheres com uma profissão quase tão antiga quanto a nossa...
- Aí, Lucas, aí mesmo!
Se me perguntassem, não saberia dizer de quem era a mão que me tocava, ou a quem pertencia a boca que eu beijava. Conseguia ver Lucas atrás de uma loira e Lúcifer na sua frente. Se eles se ocupavam com uma, isso significava que eu, provavelmente, estaria com as outras duas, mas, naquele momento, não juraria por minhas asas, porque aquelas mulheres pareciam ter mais do que quatro mãos e duas bocas. Me deixei cair no meio das almofadas e deixei-as trabalhar em mim, até me fartar. Naquele momento, tinha a certeza de que não haveria sensação melhor do que juntar as mãos atrás da cabeça enquanto apreciava a habilidade que aquelas mulheres tinham com a língua. Quando elas aproveitaram sua proximidade para se beijar de um modo lascivo, não consegui resistir e tive que puxar a que estava mais ao alcance para cima de mim, se sentando, exatamente como queria e onde queria e iniciando o balanço correto, ainda que demasiado lento para o que eu necessitava. A outra fugiu para junto de Lúcifer e os gritos que continuaram e os que vieram depois apenas confirmaram aquilo que já sabíamos: éramos melhores do que os outros anjos.
Quando, por fim, estávamos saciados e as três tinham acabado a melhor transa de suas vidas, eu abri a porta e mandei-as sair. Era sempre eu que dava o golpe final. Lucas não tinha coragem de mandar uma mulher embora depois daquilo e Lúcifer, simplesmente, não se importava.
- Tive medo que o próprio Senhor decidisse vir averiguar o que se passava, pelo modo como gritaram. - disse Lucas, estatelado nas almofadas. 
Eu ri, mas Lúcifer não. Muito pelo contrário, suas feições assumiram uma expressão concentrada.
- Acham que o Senhor existe mesmo? – ele perguntou, algo renitente.
- Você está brincando, certo? – atirou Lucas.
A falta de resposta de Lúcifer mostrou que não, não brincava.
- Não pode estar falando sério. – disse eu.
Ele fez uma pequena pausa para ponderar as palavras antes de responder. Provavelmente, devido a sua imaginação galopante, falava muito pouco, com medo de que o que dissesse a seguir, apesar de parecer perfeitamente aceitável, em sua cabeça, depois de transformado em palavras ditas, fosse estranho ou soasse a pura loucura.
- É que… Se excluirmos os Serafins, podemos dizer que nunca ninguém O viu, nunca ninguém falou com Ele, ninguém têm provas de Sua existência. Nada. O que é que nos garante que os Serafins não nos estão enganando? Tentar nos controlar, como se fossemos suas marionetes? 
- Os escritos? – sugeriu Lucas.
- Facilmente manipuláveis.
Sentei-me no chão, com as costas apoiadas na porta de madeira.
- Os anjos não mentem. – afirmei.
- Isso não é verdade! Nós três mentimos, sempre que alguém pergunta se já tocamos em alguma humana.
- Isso é um assunto menor, além de que, quando mentimos, toda a gente sabe que o fazemos. Achas mesmo que os Serafins nos mentiriam sobre algo tão importante como a existência do Senhor?
- Se nós, Querubins, conseguimos mentir sobre coisas pequenas, o que nos garante que eles, mais poderosos do que nós, não o podem fazer em grande escala?
- Mesmo que possam, não quer dizer que o façam.
- Então por que é que não podemos todos vê-lo? Falar com ele?
- Porque nem todos têm esse privilégio. – declarou Lucas. – Se não fosse assim, a sua figura seria tão banalizada que perderia qualquer significado.
Lúcifer se apoiou no cotovelo para encarar Lucas.
- Você acredita mesmo nisso?
Apesar de, à primeira vista, termos achado que Lúcifer estava completamente louco, a semente começou germinando em nossas cabeças. O que, antes, era impensável se tornou possível e, depois, provável. Lúcifer respondia a todos nossos argumentos com argumentos ainda melhores. O que, antes, parecia certo se tornou numa necessidade doentia de descobrir a verdade. Fizemos vários planos para tentar apanhar os Serafins em falso, percorremos o Éden de uma ponta à outra, procurando qualquer sinal de que Ele pudesse existir. Não encontrámos nada e esse fato só nos fez duvidar ainda mais. Nossa busca se tornou a nossa obsessão particular.
- Temos que os encostar na parede. – propôs Lúcifer. – Obrigá-los a mostrar provas ou a admitir que estão enganando a todos.
- Isso não me parece prudente. – de todos, Lucas continuava o mais crédulo. Não sei o que lhe custava mais: se a possibilidade de não ter uma força superior a olhar por ele, ou se o fato de estar sendo enganado por aqueles que considerava parte de sua família.
- É a única forma. Eles é que pediram por ela.
Concordei, prontamente. Aos poucos e poucos, me tornara quase tão paranoico com aquela ideia quanto meu amigo. A necessidade de lógica de meu ser, até àquele momento, adormecida, não me deixava acreditar em coisas não provadas.
Então, ficou decidido. Nessa mesma noite, descobriríamos tudo.
E foi isso que fizemos.
Quando o relógio deu as doze badaladas, quase como se fosse um ritual, Lúcifer, Lucas e eu saímos de nossos quartos, depois de tomar uma grande dose de álcool e rezar – algo hipocritamente, devido àquilo que estávamos prestes a fazer. – para que fizesse efeito e nos desse a coragem que necessitávamos para enfrentar nossos superiores. Caminhámos até à sala dos serafins. Eles estariam lá, se não todos, pelo menos os mais importantes, aqueles que poderiam responder a nossas questões. Não nos era permitido entrar ali, mas fui eu mesmo quem abriu a pesada e dourada porta.
- Não são permitidos aqui. – disse uma voz, logo a seguir a nossa entrada, que ainda me fez questionar todo aquele esquema. Não posso falar pelos outros, mas eu, apesar de minha aparência relaxada e segura, termia internamente. Sabia ao que me sujeitava: vergonha, um corte de asas e, pior, a negação da existência daquele que considerava um pai. Foi este o momento em que quase voltei para trás e esqueci que aquelas suspeitas alguma vez haviam existido.
Não o fiz. Lúcifer não deixou.
- Queremos provas. – começou.
Não demorou muito tempo para que a entrada da sala se enchesse de serafins, com as suas asas enormes e poderosas, que podiam nos derrubar apenas com um abrir e fechar.
- Provas de quê, Querubim?
- Provas da existência do Senhor.
Houve quem sustivesse a respiração e, depois inquiriu, quebrando o silêncio.
- Se é uma hipótese assim tão absurda, não devem ter problema em mostrar que nossas dúvidas são infundadas. 
Todos os serafins começaram falando ao mesmo tempo, umas vozes em cima de outras, era difícil entender o que diziam. Alguns perguntavam quem éramos nós para questionar tal coisa, outros sugeriam um corte de asas, e outros, ainda, afirmavam que se o Senhor nos ouvisse destruiria tudo. Disseram coisas feias, especialmente para seres tão angelicais como os serafins. Ordenaram-nos que pedíssemos perdão por nossos pecados. Afirmaram que Deus era misericordioso, então, mesmo com nossa rejeição, Ele nos salvaria e conduziria ao caminho correto, o caminho da luz e da perfeição. Mandaram-nos embora, fecharam a porta na nossa cara, se riram de nós como se fossemos três crianças que ainda não compreendiam o mundo e fossem demasiado pequenas para ser ensinadas. No final, não responderam às nossas dúvidas. Ficamos sem qualquer resposta da parte deles. Eu sabia que Lucas, que, naquele momento, estava de olhos fechados, rezava para que o Senhor se mostrasse, para que desse ar de Sua Graça porque nós necessitávamos seriamente. 
O Senhor não o fez. Nem o fizeram os serafins. No fim, não ficamos iguais ao que éramos quando entrámos. O que antes eram dúvidas, se haviam tornado certezas porque a resposta dos serafins nem sequer uma negação fora. Não nos haviam acalmado, não haviam argumentado, nada. Haviam rido e reduzido nossa hipótese ao absurdo. Mesmo que Ele existisse, o que não acreditámos mais, não continuaríamos num local onde não éramos valorizados, nossa arrogância não o permitia. No fundo, sempre soubéramos que não éramos como eles: éramos melhores, fazíamos coisas melhores, aproveitávamos nossa existência. Espalhamos a palavra pelos outros anjos, procuramos apoio, conseguimos alguns.
E partimos.

Entre Anjos e DemôniosWhere stories live. Discover now