Capítulo XIV

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Don't try to wake me in morning causa I will be gone

Asleep, The Smiths

- Bom dia, pequena Hannah. – Daniel abriu a porta de minha clausura e entrou com uma bandeja de comida. – Como se sente hoje?
- Claustrofóbica. – respondi, com um sorriso falso.
- Com o tempo, vai acabar por se habituar. – afirmou, pousando a bandeja na cama. Tinha um prato com torradas, talheres, uma caneca de metal com leite a fumegar e – o pior o tudo – uma flor de pétalas grandes cujo nome desconhecia. Nunca me interessara muito por botânica.
- Eu vou sair daqui não tarda.
O anjo assumiu uma expressão de falsa compaixão.
- E quem é que pensa que vem buscar você? O seu demônio? – sentando-se junto a mim, pegou minha mão nas suas. Tentei afasta-las, mas não deixou. – Infelizmente, tenho o dever de informar você que isso não vai acontecer, já que ele está demasiado ocupado com o novo rabo de saias da zona. Uma demônio, como ele. Uma Guardiã muito sensual, por sinal. – aproximou sua face da minha e fez um sorriso vitorioso. – Acho que você passou à história, pequena Hannah.
- Não acredito em você! – atirei, rispidamente, tirando a mão do meio das dele, desta vez com sucesso.
- Os anjos não mentem, pequena Hannah. – declarou. – Já deveria estar esperando que algo assim acontecesse, afinal, ele é um demônio. – baixou a voz algumas oitavas, nas palavras seguintes. – Ele nem sequer veio à sua procura. Nem uma única vez.
Senti uma lâmina fina, mas grande, se espetar em meu peito e perfurar as várias camadas de pele e músculo até chegar ao coração, onde se cravou e girou, rasgando tudo à sua volta. O meu estômago se remexeu e pensei que fosse vomitar. As lágrimas começaram a desejar sair, talvez mais do que eu própria desejava abandonar aquele local.
O som do ferrolho a ser corrido me alertou para a saída de Daniel e foi essa a única autorização que precisei para levar as mãos aos cabelos e puxar. Gritei, mais salto do que gostava. Libertei o sofrimento que sentia pelos olhos e pela dor que causava no couro cabeludo.
Raiva. O que passava por mim era, acima de tudo, raiva. Ódio. Sentia-me suja e usada. Tudo parecia estar a correr tão bem! Aqueles momentos dormindo encostada a Ezra, no conforto de seus braços ou, pouco antes, quando me confessara sua história.
Era tudo falso. Tudo incrivelmente falso, e eu, patética, acreditara em tudo. Acreditara nele, acreditara que, no fundo, ele poderia ser bom e até gostar um pouco de mim, nem que fosse só um pouco.
Usara sua história para me convencer que tivera razão para escolher o inferno, para trair o Senhor. Dizia que os anjos serafins lhe haviam mentido. Que burra! Toda a gente sabia que os anjos não mentiam!
Contudo, ele mesmo admitira mentir sobre mulheres, enquanto anjo. Por que inventar isso?
Começava a ficar confusa. Meu lado racional dizia que era tudo falso, que era tudo mentira dele, mas meu coração gritava que os anjos mentiam e que o que eu sentia, nossa história, o pouco que já vivêramos e tudo o que ainda podíamos viver, tudo isto merecia que eu não tivesse dúvidas, que lutasse pela verdade, que não desistisse.
O brilho da caneca de metal entrou em meu campo de visão e se mostrou mais sedutor do que o que seria normal. Observei o ferrolho com atenção e, depois, novamente a caneca.
Sim, talvez houvesse uma hipótese.
Peguei na caneca e me levantei, indo até à porta. O ferrolho estava localizado na parte de dentro, contudo, a maçaneta estava do lado de fora, travada de algum modo. Se conseguisse desprender aquele meio aro de metal preso na parede que segurava o ferrolho e mantinha a porta fechada, talvez conseguisse sair dali.
Num impulso, despejei o conteúdo da caneca no chão e bati com ela contra o aro. Estremeceu, mas não cedeu. Tentei mais uma vez e outra, e mais outra, até que um dos lados da alça da caneca se soltou e o aro pareceu começar a ceder. Usando a alça como alavanca, forcei o metal. Reuni toda a minha força, precisava de sair dali.
Deus ouviu minhas preces, como sempre fazia, porque, não muito tempo depois, a porta se abriu na minha frente.

Ezra’s POV
As palavras de Lucas haviam feito curto-circuito em minha cabeça, abrindo brechas que, simplesmente, não conseguia ou não desejava fechar.
Enquanto fazia, mais uma vez, o caminho até a casa do anjo, a possibilidade de Lucas estar errado e de eu estar prestes a passar a maior vergonha de minha existência passava por mim, contudo, não ficava ou me comovia. Apercebi-me que não me importava de correr esse risco, se a outra possibilidade fosse ela voltar para mim, seríamos felizes. 
Ser feliz. Mas o que era, verdadeiramente, ser feliz? Havia sido feliz, alguma vez? Não me lembrava. Quando pensava em momentos felizes, ela estava em todos, o que me causava grande confusão porque o tempo que a conhecia era uma minúscula fatia no espectro de minha existência. Estranho, não é? Era esta força que me compelia a continuar meu caminho, o mais rápido que conseguia. Tivesse eu as habilidades de Lucas!
Já estava perto. O edifício era tão alto que se tornava facilmente visível. Pensei no que diria, quando a visse. O que se dizia numa situação daquelas? Volte para mim? O seu lugar é a meu lado? Eu sou o melhor para você? Tem de ficar comigo? Vai voltar comigo, quer queira quer não, porque eu sou assim, o desejo?
Sim, era isso que diria. Obrigá-la-ia a ficar comigo, quer quisesse quer não. Podia vir contrariada, mas acabaria por se habituar à minha presença novamente. Não tinha como não.
Estava tão, mas tão concentrado no que lhe diria – como se fosse a coisa mais importante do mundo! – que não notei no barulho das asas nem no cheiro cítrico. Não notei nada, apenas senti um grande peso na parte de trás de minha cabeça.

Entre Anjos e DemôniosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora