Capítulo I

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You gave me magical, I gave you wonderful

Biblical, Biffy Clyro



Ser escravo era mau, contudo, a falta de outra realidade tornava-o suportável, além de que a esperança de ser livre podia ser um ótimo combustível. Havia coisas piores do que "trabalhar" para os anjos. Ser o cachorrinho de um demônio, provavelmente, seria mil vezes pior. Era assim que eu me mantinha viva, pensando que a desgraça dos outros era pior do que a minha. No fim da era antiga, a minha família era das poucas que continuavam a ignorar todos os argumentos científicos e filosóficos contra a existência de Deus e acreditavam que Ele era sumamente bom e etc. Como tal, foi passada de geração em geração a ideia de que, entre anjos e demônios, os anjos eram os mais estáveis e tolerantes e, portanto, confiáveis. Não foi uma decisão difícil, na hora de escolher a quem pedir proteção. A minha família - de certeza que, um dia, tivemos um sobrenome, no entanto, tal como a nossa individualidade e, talvez, sanidade, foi perdido - logo prestou vassalagem aos Domínios, uma das categorias de anjos. Bem, ao menos não foi a um Arcanjo, eles gostam de se meter em confusões. Os Domínios, basicamente, distribuem e regulam os anjos de posições inferiores, enquanto presidem o destino das nações (pelo menos, era isso que faziam, quando havia nações) e resolvem conflitos. Estiveram no centro da guerra, lado a lado com os cavaleiros de Deus, contudo, isso foi há muito tempo antes de eu nascer, então, não tenho certezas de nada.

- Hannah, é preciso ir limpar o quarto do Domínio Daniel.

Afastei a mente dos meus devaneios e olhei para a minha mãe. No auge dos seus quarenta anos, continuava lindíssima, com o cabelo ruivo, brilhante e domado. Admirava essas características. Contrariamente as delas, as minhas madeixas eram desorganizadas em caracóis pouco definidos, culpa do meu pai e dos seus genes.

Genes. Aprendera essa palavra num antigo livro. Aparentemente, era algo que os pais passavam aos filhos, mas parecia ser um conceito demasiado difícil para o aprofundar.

- Vou já - me levantei da mesa da cozinha e peguei o elevador até ao quarto do nosso amo, no andar de cima. Como todos os anjos, era extremamente arrumado, extremamente educado, extremamente cuidadoso. Resumindo, Daniel era perfeito, mesmo para um anjo. Enquanto fazia a cama, pensava no modo como o seu cabelo ondulado caía sobre aqueles límpidos olhos azuis. O seu rosto era doce e - sem querer cair em clichê - angelical, forte mais delicado.

Sim, eu tinha uma grande paixonite por ele. Como podia não ter? Era deslumbrantemente lindo, impecavelmente simpático e, quase, sumamente poderoso. Sim, também fazia parte da raça que me escravizava, mas, como já disse, a falta de outra realidade tornava as coisas mais fáceis a esse ponto. Não me demorei muito naquele quarto, visto que estava tudo, como sempre, impecável. Coloquei a roupa deDaniel para lavar, não resistindo a sentir aquele cheiro maravilhoso a hortelã que emanava. Os anjos não cheiravam todos da mesma maneira, contudo, todos possuíam um odor fresco ou doce, simpático e divino. Nunca conseguira chegar suficientemente perto de um demônio para poder concluir o que quer que fosse sobre o cheiro deles, no entanto, as pessoas diziam que não era nada agradável. Falavam em enxofre e esgotos. Eu tinha a certeza que nenhuma dessas pessoas conseguira aquela informação de forma empírica, por isso, não confiava muito, a única coisa em que cria sem provas, era Deus.

Regressei à cozinha apenas para a minha mãe me dizer que o Domínio Daniel precisava de mim, no escritório. Sem esperar, entrei, novamente, no elevador. Os anjos gostavam de sítios altos, ao contrário dos demônios, então, normalmente, viviam em arranha-céus, como aquele, ou em montanhas.

O elevador parou e saí para o corredor extremamente bem iluminado, que dava para o escritório, visível por trás de uma porta de vidro grosso. Mal me viu, Daniel fez sinal para que entrasse. Estava atrás da secretária transparente, em toda a sua grandeza, selando algo com lacre azul e com o seu símbolo. Aquela sala era normal, pensava eu. Fresca, luminosa, com livros sem cheiro e organização extrema. Típico de um anjo.

Entre Anjos e DemôniosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora