Capítulo VIII

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This is the way you left me, I'm not pretending. No hope, no love, no glory, no happy ending

Happy Ending, MIKA

Não conseguia concluir uma razão, mas os fatos eram que Ezra tinha a capacidade de criar em mim tantas emoções em tão pouco tempo que, com certeza, não era saudável. Nada nele era saudável. Nada do que fazia comigo era saudável ou bom ou, sequer, necessário. Ele parecia gostar de jogar comigo, como se eu fosse uma pequena bola que pudesse ser atirada para onde ele quisesse para, depois, ordenar que regressasse, vezes sem conta.
Não sabia explicar o que o levara a me deixar em casa. Casa. Como se minha mente não estivesse confusa quanto a esse conceito. Fui abraçada por minha mãe e, depois por meu pai, e durante os segundos em que seus corpos estiveram em contacto com o meu, a sensação de abandono desapareceu, apenas para retornar, mal me largaram, com ainda mais força. Como é que, em tão pouco tempo, alguém me poderia ter marcado tanto, especialmente alguém como Ezra? Ele era sádico, desumano, cruel, arrogante, mas me fazia sentir segura e protegida, de um modo que nunca experimentara antes. Era estranho, arrepiante e ao mesmo tempo, reconfortante.
Os olhos de Daniel estavam em mim e tenho a certeza que um laivo de raiva pairava sobre eles. Talvez, noutro tempo, tivesse medo, contudo, depois de experimentar a ira de um demônio, o mau humor de um anjo não me parecia nada de temível.
- Para o escritório - ele ordenou, desviando o olhar e caminhando para o elevador. Segui-o, num passo confiante, ainda que perturbado pelo abandono recente. As portas de metal se fecharam, mas Daniel continuou me ignorando. Não havia problema. Não importava, o silêncio era bem-vindo naquela altura em que as palavras pediam lágrimas que as ajudassem saindo.
Durante a ascensão do elevador, tentei colocar minha cabeça em ordem e analisar os fatos: Ezra, por alguma razão desconhecida, me devolvera e eu, por outra qualquer razão também desconhecida, me sentia mal por isso. Queria saber qual era meu problema, o que estava errado comigo e, ao mesmo tempo, sentia raiva, me sentia traída porque pensava... pensava que tínhamos "algo". Este é o modo mais fiel de expressar o porquê de me sentir tão mal. Ezra e eu tínhamos algo e esse algo, fosse o que fosse, não era compatível com o abandono, supostamente. Era isso que me fazia sentir mal. Ele quebrara o nosso algo.
Quando o elevador parou, foi o vento que Daniel fez ao passar por mim que me despertou. Fui atrás dele até a sala de paredes de vidro, tão limpa e imaculada quanto me lembrava e ainda mais fria.
- O que aconteceu? Por que é que ele não quis mais você? O que você fez? - disparou.
- Não fiz nada - respondi, sem emoção.
- Teve que fazer alguma coisa! - Daniel levou as mãos à cabeça, em desespero e começou a andar de um lado para o outro. - Mas você é sempre tão quieta! O que pode ter feito? - de repente, virou seu corpo para mim, seus olhos mais abertos do que o costume. - Ele usou você? Se alimentou de você?
Fiz os possíveis para não corar. Podia contar o que se passara, mas agora que Ezra já não estava ali, partilhar o momento mais intenso de minha estadia em sua casa era como me desfazer da única parte dele que ainda permanecia comigo. Estranho mas era assim.
- Se alimentou de mim, uma vez - acabei dizendo.
- Só isso?
Assenti, com a cabeça.
- Então não percebo o porquê - Daniel se atirou para a cadeira, do modo despojado que era tão habitual emEzra e tão estranho nele.
- Posso ir? - questionei.
Ele me estudou, por uns momentos, antes de responder:
- Sim, pode.
Sem esperar, virei as costas e saí. A vontade de chorar era tão grande! Mas não devia chorar. Conhecia o demônio há tão pouco tempo e eu não era fraca ou frágil. Não. Meus pais, Daniel, os outros escravos pensavam assim mas eu sabia que não e, por algum motivo à qual era estranha, tinha consciência de queEzra também sabia. Ele me conhecia. O inferno parecia me conhecer melhor do que o paraíso. Talvez fosse isso. Talvez eu pertencesse ao inferno. Talvez. Ia ter de esperar para confirmar isso porque eu ia fazer de tudo para mostrar a toda a gente quem eu realmente era.
Dizem que a raiva é uma das cinco fases da perda. Eu assinava por baixo.

Entre Anjos e DemôniosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora