O fugitivo sob meu teto

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Os boatos na Vila eram de que o jovem padeiro havia fugido. Ele fez questão de sair a pé, com uma muda de roupas e alguns utensílios nas costas, no horário mais movimentado daquele lugar: a "hora do almoço". Entre o meio-dia e as duas da tarde, senhoras luxuosas saíam a caminhar para digerir a farta refeição e tomar um pouco de Sol, enquanto os trabalhadores das minas iam ao bar fazer uma pausa no serviço e as meninas na mocidade iam ao seu encontro a fim de trocarem olhares. Quase todo mundo estava na rua, ou pelo menos a porção que fofocava estava ali. Todo mundo o viu saindo em direção ao Norte. O que ninguém viu foi que ele adentrou a floresta alguns quilômetros a frente. Conhecia bem a floresta e seus atalhos. Dormiu embaixo de uma árvore para descansar. Tudo estava dando certo, até que veio a chuva.

Ele até tentou esperar que a chuva acabasse, mas estava demorando muito. O verão estava chegando ao fim e o outono se aproximava, se esfriasse mais, com a chuva, ele poderia facilmente adoecer. Então ele lembrou do chalé de Ofélia. Primeiro, hesitou em pedir favores a uma recém conhecida, mas depois lembrou de sua gentileza e hospitalidade. Além de ser, sem dúvidas, a beleza mais pura que seus olhos tiveram o prazer de testemunhar. Quando ela resolveu que iria acolhê-lo, ele explicou o que havia acontecido e a jovem se compadeceu e prometeu que o ajudaria como pudesse a sair daquela situação.

– Você não quer tomar um banho quente? Aqueça-se, enquanto eu preparo um chá de limão com mel. É um perigo se adoecer e não puder buscar uma enfermeira. Mas para sua sorte, meus chás costumam sempre ser muito eficazes.

Ela preparou o chá, o banho e separou para ele uma toalha. Era a última toalha que tinha. Enquanto ele estava na banheira, ela retirou discretamente o livro debaixo do sofá para continuar a leitura. Na página aleatória em que abriu estava escrito "Feitiço de proteção com Sal Grosso". Na mosca! Era tudo o que queria. Era como se o livro soubesse do que ela estava precisando. Ela pensou que aquilo deveria ser algum tipo de sinal divino, então repercutiu todos os passos do feitiço religiosamente, seguindo as exatas medidas e proporções indicada no livro. Agora, só a bastava esperar que funcionasse. Mas isso não era um problema, já que Ofélia nunca foi uma pessoa cética. Guardou um livro novamente, dessa vez em um lugar mais seguro, e aguardou que Bento saísse do banheiro para fazer algo para comer.

Quando ele saiu, vestindo uma camisa de linho entreaberta no peitoral e uma modesta calça de algodão, os olhos da jovem brilharam. Aquele rapaz era, certamente, muito bonito. E por algum motivo, o suspense que o acompanhava o tornava ainda mais charmoso. Será que ela viveria uma aventura ao lado dele? Ou será que ele a deixaria como já havia sido deixada antes? Sinceramente, Ofélia queria acreditar na primeira opção, mas o mais provável mesmo é que ele só estivesse aproveitando sua hospitalidade enquanto precisasse, e depois partiria. Afinal, ele era, literalmente, um fugitivo. Se não tinha coragem de enfrentar aquele senhor, com que maturidade ele encararia o amor? Mas tanto faz, afinal ele era um jovem extremamente charmoso, pelo menos ela não se sentiria tão sozinha ao lado dele enquanto ele estivesse ali com ela

– Sinceramente, acho injusto que fique aqui até me contar a história toda. Por que você pediu dinheiro emprestado se não tinha como devolver? Isso é muito imprudente. – ela disse, catando alguns ingredientes no armário da cozinha – Acho bom você já ir explicando tudo.

– Bem... Na verdade, tenho um pouco de vergonha.

– Você quer bolo?

– Claro! Eu amo bolo.

– Só vai ganhar bolo quando eu souber a história completa. Minha casa, minhas regras, certo?

– Bom... Tudo bem. – respirou fundo – Uma hora eu ia ter que contar, de qualquer jeito. – seguido por alguns minutos de silêncio.

– Então, você vai contar ou não? Lembre-se que estou fazendo bastante bolo – ela indagou.

– Tá. É o seguinte... Eu queria abandonar a padaria. Queria sair da cidade, mas não tinha dinheiro suficiente pra recomeçar em outro lugar. Muito menos abrir outra padaria. A verdade é que aqui eu só me dou bem porque é a única padaria local. Todo mundo sabe que se não fosse por isso, eu estaria desempregado. Meu pão nem é tão bom assim. Então eu resolvi pedir dinheiro emprestado. Só o suficiente pra sair daqui e construir a minha casa própria em um lugar bem longe. O mais longe possível da Vila. Estava tudo certo pra eu ir até que... Bem, até que eu perdi todo o dinheiro. Você vai achar que estou mentindo, mas eu juro, o dinheiro todo sumiu. E ele estava bem escondido. Foi como se alguém tivesse visto onde eu guardei e levado embora.

Ofélia achou a história um pouco estranha demais pra ser verdade, mas ela não duvidaria de Bento por tão pouco. Nenhuma das outras histórias que ele a havia contado eram falsas, disso ela tinha certeza. Então o caso agora era mais um caso de mistério do que de caráter. Ela mesma já tinha perdido muitas coisas. Em especial, coisas pelas quais tinha grande afeto. Um cardigã antigo da avó que guardava com muito carinho e que, um belo dia, simplesmente resolveu sumir do armário, e como quem tem vontade própria, nunca mais voltou. Também já cansou de perder meias. E o mais estranho: até biscoitos sumiam em sua casa! Ela os guardava em um potinho de vidro e, se não comesse rápido o suficiente, eles começavam a sumir! Isso mesmo, era como se alguém comesse seus biscoitos aos pouquinhos, para que não notasse, até que não sobrasse mais nenhum. Então ela não tinha motivos para duvidar de Bento, afinal, se até biscoitos são roubados, por que alguém deixaria de roubar uma fortuna de dinheiro? Uma fortuna que daria pra escapar daquele lugar...

E muita gente queria escapar daquele lugar. Pensou nos irmãos, e em tudo o que Francisco a havia contado sobre seus planos de fugirem. Seria bem provável que se soubessem da fortuna que Bento havia escondido, eles tentariam pegar. Mas ela tentou com intensidade não pensar nisso, e não duvidar do caráter daqueles dois humildes irmãos. Mas... Que era conveniente, era. E era muito. Mas ela deixou a teoria pra lá, porque o mais provável, se tivessem realmente conseguido aquele dinheiro, que já estivessem bem longe daquele lugar. De qualquer maneira, resolveu investigar.

– Você conhece dois irmãos, Francisco e Helena? Pergunto porque eles passaram a noite aqui hoje. – perguntou, com um rosto que evidenciava que ela queria saber muito mais do que iria admitir.

– Francisco e Helena? Conheço, sim. Filhos do pescador Gael, se não me engano. Ele é um bom senhor, muito conhecido na cidade. Troca peixe no bar por cerveja. Só dizem que é alcoólatra, mas é um bom senhor.

– Esqueci que você não estava na cidade. O pai deles morreu. – ela contou, causando um espanto instantâneo no rosto de Bento – Eu encontrei Gael e seu irmão ontem na beira do lado, já com os corpos gélidos, com espuma escorrendo da boca. Eles passaram a noite e eu tentei consolá-los pela perda. Mas, hoje de manhã, foram embora antes que eu acordasse.

– É sério? Gael e Igor estão mortos? Que lástima, eram bons companheiros de bar. Já descobriram o que aconteceu?

– Não. Isso tudo foi ontem, eles retornaram à Vila hoje pela manhã e eu não passei lá para saber das notícias. Mas Francisco disse algo sobre...

– Sereias. Ninguém merece os boatos que rodam esse lugar. Parece que somos um povo primitivo. Tudo que acontece é culpa dos "seres da natureza". Isso nem sequer existe.

Ofélia gelou. Estaria ele ridicularizando suas crenças? Ficou muito sem graça após a afirmação do rapaz. Se abaixou para colocar a massa no forno, quando ouviu Gerônimo miar para ela. Ele interviu, perguntando se ela realmente tinha certeza de que queria que aquele ser tão cético ficasse ali, ridicularizando suas escolhas pessoais de vida. É claro que ele não sabia que ela acreditava em tudo isso, e muito menos que sentia a presença desses tais "seres", mas não seria educado presumir que sim? Ela sempre pensava nas palavras que poderiam magoar alguém antes de falar algo em voz alta, e sempre as evitava. Mas Gerônimo tinha razão: o jovem não podia desrespeitar suas crenças, pelo menos não enquanto estivesse debaixo de seu teto, comendo sua comida e sentando em seu sofá.

– Pois é, Gerônimo. Pois é. – ela respondeu o gato, se esquecendo por um momento que havia outra pessoa ali, e que certamente não acharia normal que estivesse conversando com um gato. – Você tem razão.

– O que ele falou? – perguntou Bento, em tom de ironia, terminando a frase com uma risada simpática.

– Ele disse que meu bolo vai ficar uma delícia. – respondeu Ofélia, quase que imediatamente. 

OféliaWhere stories live. Discover now