O cão e o jardineiro

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Bento estava lá no chalé há poucos dias, e a convivência entre os dois já não ia muito bem. Ele era muito desorganizado, e não fazia questão nenhuma de agradar a Ofélia sendo um hóspede cortês. Pobrezinha, que mantinha sempre tudo no lugar e bem limpinho, e agora precisava lidar com a bagunça e a sujeira de um fugitivo criminoso. Mas ela pensava consigo que era melhor ela suportar a desordem por mais algum tempo do que perdê-lo para sempre, afinal, não se sabe o que o velho usurário faria a Bento caso o achasse. E ele não deixava de ser, claro, um homem muito charmoso e atraente. Seu coração mole e seus olhos apaixonados facilmente desconsiderariam qualquer defeito dele, mesmo que seus pedidos de desculpas fossem vazios de intenção, e no fundo ele talvez estivesse apenas se aproveitando da bondade da moça.

– Hoje preciso ir à Vila, vou comprar alguns ingredientes da cozinha e outras coisas que faltam. – disse Ofélia – Não estava preparada para cozinhar para dois... As coisas acabam muito rápido. Você teria alguns tostões para ajudar nas compras?... – ela pediu ajuda com um pouco de hesitação, pois não gostava de pedir favores a ninguém. Mas então, pensou no grande favor que ela estava fazendo a ele e que, talvez, salvasse sua vida.

– Eu não tenho dinheiro nenhum, já lhe disse que estou devendo. Não é óbvio que não tenho como ajudar? – o jovem respondeu, de forma arrogante.

– Desculpe... Eu deveria ter imaginado. – ela sentiu-se mal com a resposta do rapaz, porque tudo aquilo era muito injusto. Ele não tinha nada além do dinheiro que havia pegado emprestado? Ele não tinha uma mísera moeda guardada que pudesse ajudá-la a trazer alimento pro lar em que não apenas ela, mas ele também estava morando?

E então ela seguiu porta afora com sua cestinha e algumas moedas nos bolsos. Ainda estava cedo e o Sol brilhava iluminando a floresta alaranjada com a chegada do outono. Estava fresco e ventava, tornando a caminhada muito agradável. Pensou em fazer uma torta de maçã com canela, sua favorita, e então lembrou de buscar na macieira algumas unidades de maçã também. Pensou consigo se teria alguém na padaria, substituindo Bento, ou se precisaria fazer o próprio pão em casa, o que considerava um tanto trabalhoso. De repente lembrou que não havia ninguém mais apropriado para fazer um pão do zero do que o seu próprio hóspede, e que pelo menos isso ele poderia fazer para ajudá-la.

Para sua surpresa, ao chegar na praça, pôde observar que a padaria estava aberta e haviam muitas pessoas lá dentro. Caminhou em direção ao estabelecimento para saciar sua curiosidade de quem estaria no comando já que Bento não estava lá. Quando chegou à porta viu que não havia ninguém atrás do balcão, e as pessoas saíam de lá com sacos de farinha e açúcar nos braços, como quem saía de um armazém. Não era possível que havia tanta gente roubando na cara dura. Até mesmo aquelas senhoras de luxo saíam de lá levando pratos, copos e outras coisas, como se não tivessem dinheiro para comprarem os próprios, ou ainda não tivessem o suficiente em casa. Aquela Vila a surpreendia cada vez mais com sua podridão e a falta de caráter daqueles que lá habitavam. Pensou que pelo menos eles poderiam dar algumas sobras àquele velho mendigo, mas percebeu que ele não estava dormindo na calçada onde sempre dormia. Olhou pelas redondezas e ele realmente não estava por perto. Estranho...

Ela foi ao armazém e quando chegou lá percebeu que as prateleiras estavam lotadas com os mais variados produtos. Seus olhos enchiam com tantos temperos e chás, mas ela não podia gastar todo seu dinheiro com essas luxuosidades, senão ela passaria fome, já que nada disso alimentava. E o pior era: além de Bento não ajudar em nada, também comia muito mais do que ela. Talvez o triplo do que ela costumava comer. Sentiu-se revoltada com as atitudes dele, seu comportamento havia mudado em tão pouco tempo... Antes era um rapaz tão cordial, gentil e educado... Agora que vivia sob seu teto, a tratava como uma mera serviçal.

Quando terminou as compras, voltou para casa com a cesta cheia de maçãs, açúcar e leite. Mas foi só quando chegou em casa que percebeu que faltava um importantíssimo ingrediente da receita: suco de limão. Ela precisaria ir até o limoeiro e buscar alguns limões para conseguir fazer a torta, então largou as compras na mesa da cozinha e se dirigiu em direção ao lago dos limoeiros com sua pequena cestinha de vime e um apanhador de frutas que havia montado com alguns galhos. Já estava mais frio e o vento soprava cada vez mais forte. Olhou para os céus e afirmou com certidão: em breve iria chover. O tempo nublado havia escurecido seu caminho e ela tentou ir o mais rápido que pôde.

Chegando lá, para sua surpresa, o limoeiro estava repleto de frutos, o que não era tão comum já que quase todo mundo os colhia ali. De repente sentiu um sopro muito intenso no ouvido que não parecia ser apenas uma corrente de ar, e pensou que alguém havia realmente soprado em seu ouvido.

– Ai! – exclamou. Então olhou ao seu redor apenas para testemunhar que estava sozinha ali, e que provavelmente teria sido mesmo só o vento.

Catou mais alguns limões e então ouviu um canto angelical clamar a sua presença. Era como se alguém estivesse tentando se comunicar com ela. Não havia ouvido explicitamente que a chamassem pelo nome "Ofélia", mas ouvia uma música belíssima cujas melodias pareciam soletrá-lo letra por letra... Olhou ao seu redor e, novamente, não viu ninguém. Sentou-se em um tronco seco de uma árvore morta e aguardou para ver se aparecia alguém. Estranhamente, não estava com medo daquela música bizarra de origem desconhecida, mas estava com muito medo da tempestade que poderia desabar dos céus a qualquer momento. Mas sua curiosidade não a permitiria que voltasse para casa sem que antes descobrisse de onde vinha aquele delicado som. Foi então que ouviu um burburinho distinto na água, como se alguém houvesse acabado de mergulhar. Dirigiu-se à beirada e esperou que aquele alguém emergisse de volta à superfície. Mas nada aconteceu, até que ouviu alguém chamar seu nome com uma voz muito delicada, desta vez com todas as letras e sílabas. Seguiu aquele som e viu que era de uma lindíssima moça de cabelos negros, que se escondia atrás de uma enorme rocha submersa.

– É você está me chamando? – perguntou Ofélia, com um aspecto espantado. – Saia daí... Logo vai chover e está muito frio...

– Eu não sinto frio. – a encantadora moça aproximou-se, emitindo uma leve risada que agraciava os ouvidos de Ofélia com intensa eufonia, e então estendeu seus braços – Veja, meu corpo é gélido, o vento que bate em minha pele parece uma quente brisa de verão.

– Você está bem? Por que estava me chamando? – Ofélia perguntou, não sabendo reagir àquela interação tão misteriosa. Seria a moça uma sereia? Um cadáver? Estava gélida demais para que estivesse viva e sua voz era angelical demais para que fosse uma mera mulher humana.

– Você precisa tomar cuidado. Lembre-se do jardineiro e do cão. – e então a bela moça de pele fria mergulhou de volta, revelando uma belíssima cauda de cor azul-esverdeada que refletia um brilho prateado. Era uma das criaturas mais lindas que Ofélia havia visto em toda sua vida.

"O jardineiro e o cão?", refletia e refletia... Mas não conseguia entender a mensagem que recebera da bela sereia. Essa associação lhe soava familiar, mas não lembrava muito bem de onde. Estava espantada e admirada pelo que acabara de acontecer. Tentou esperar que a bela criatura voltasse à superfície, mas então começou a chover, e decidiu retornar à sua casa. Gerônimo estava do lado de fora debaixo de um banco, aguardando ansiosamente pelo seu retorno. Ela o afagou e colocou-o para dentro de casa.

Bento se encontrava no sofá lendo um de seus livros e, quando a viu chegar, imediatamente pediu desculpa por seu comportamento mais cedo. Ela o perdoou facilmente, sem considerar muito a maneira como ele a havia feito sentir. Então pediu a ele que a fizesse pão, pois havia comprado todos os ingredientes. Resolveu não contar a ele o que havia se passado na padaria para não preocupá-lo.

– Não se preocupe. Comprei farinha e fermento também em grandes quantidades. Se não for incômodo, peço que faça pão para comermos. Mais tarde irei assar uma torta doce de maçã.

Ela agia como se nada tivesse acontecido na frente de Bento, com medo de uma resposta zombeteira por seu ceticismo arrogante. Tomou um longo banho quente e um chá de camomila a fim de relaxar, mas não conseguia tirar da cabeça as palavras que ouvira da bela sereia. O jardineiro e o cão. O cão e o jardineiro. 

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⏰ Last updated: May 04, 2021 ⏰

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