O padeiro simpático

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No dia seguinte o Sol bateu cedo em seu rosto, ela tinha deixado todas as cortinas abertas. E como havia prometido para si mesma, acordou bem cedo, por volta das seis da manhã, cortou a torta em uma dúzia de pedaços, dos quais guardou três para si. Embrulhou os outros pedaços em paninhos, colocou em uma cesta e trilhou novamente a floresta em direção à cidade. No meio do caminho, tropeçou em um galho, o qual percebeu, curiosamente, ser o mesmo galho que havia pisado no dia anterior. Seguiu seu caminho metaforizando em voz alta todos os acontecimentos coincidentes que havia testemunhado recentemente. Mas um acontecimento em especial tinha tomado quase integralmente seus pensamentos.

Poucos dias atrás, havia encontrado um belíssimo cristal à beira do lago. O tinha guardado consigo, quando deslizou sobre o musgo e ele caiu dentro da água. O lago era escuro e fundo, então, apesar do infortúnio, não se comprometeu em procurar. Na manhã seguinte ao acontecido retornou ao lago, com a esperança de encontrar um cristal que fosse pelo menos parecido com aquele do dia anterior. Chegando lá, se deparou com dois senhores pescadores. Eles eram muito simpáticos, segundo Ofélia. Sempre a viam por ali e a cumprimentavam com um bom dia. Ela se sentia agraciada sempre que estava em sua companhia, mesmo que os observasse com certa distância. Gostava de ouvir às histórias fabulosas que contavam um ao outro, além das antigas canções que remetiam a tempos mais simples. Então viu na rede de pesca um objeto brilhante que refletia a luz do Sol, quase cegando-a. Era o cristal.

– Com licença, senhores, mas vocês se importariam se eu pegasse esse pedaço de quartzo rosa para mim? O vi e fiquei encantada... – perguntou, já com medo da resposta. Ela queria muito aquele cristal cintilante, sentia-se como um ímã atrás de uma placa de metal.

– A moça se encantou com essa pedrinha aqui? Pode pegar, claro. Nem vi que tinha subido na rede.

Ofélia esboçou um sorriso no canto da boca e riu em pensamento, pois como um cristal "subiria" na rede? O comentário do pescador havia soado muito cômico. Refletiu por mais alguns segundos e a risada interna se transformou em um questionamento legítimo: como será que o cristal havia entrado na rede? Ele já estava submerso há horas, e certamente deveria ter ido parar no fundo do lago. Cogitou a possibilidade remota do cristal ter sigo fisgado pela isca, mas essa ideia parecia ainda mais surreal que a possibilidade de o cristal estar "flutuando" em meio aos peixes. Não conseguia achar uma explicação muito plausível, mas acreditou que talvez alguém havia simplesmente o posicionado ali na rede, justamente a seu favor.

– Muito obrigada! Considero um presente, mesmo que eu o tenha pedido. Então, se eu puder retribuir de qualquer forma, não hesitem em me chamar.

Os senhores trocaram olhares que pareciam um pouco perversos, o que a assustou um pouco, e então ela se despediu e voltou para casa.

Quando chegou à vila, havia muito poucas pessoas na rua. Um vendedor ambulante de perfumes, três ou quatro moças humildes voltando da padaria com sacolas de pão e um velho mendigo, que já havia visto dormindo na calçada algumas vezes. A moça se compadeceu muito com a situação do velho mendigo, e considerou deixar ao seu lado uma das fatias da torta. Mas aí iam sobrar apenas oito fatias, que não conseguiria dividir igualmente para as três meninas. Então ela pensou em comprar pão na padaria e deixar com ele para quando acordasse, mas lembrou que o padeiro sempre dava a ele os pães dormidos que não havia vendido, e que deveria estar enjoado de tanto pão. E então ela decidiu que iria, sim, deixar ali para ele uma fatia da torta. Retornou ao chalé e colocou mais uma fatia na cesta. Trilhou de volta o caminho para a Vila das Andorinhas.

Colocou cuidadosamente a fatia ao lado daquele pobre senhor que dormia na calçada, envolto por um guardanapo para que os pombos não comessem. Ele não moveu um músculo. Então ela se dirigiu ao padeiro e perguntou, com cautela e discrição, onde ela poderia encontrar a casa daquelas três meninas, pois queria deixar as fatias de presente. O presente seria uma forma de agradecimento às crianças, que a ajudaram a fazer o doce, mas também um pedido de desculpas às famílias, que haviam se preocupado muito diante do ocorrido do dia anterior. O padeiro, muito simpático, rapidamente apontou o caminho para a rua em que, para sua sorte, moravam as três famílias. Em cerca de 2 minutos, já havia deixado todas as fatias.

Já que estava na "civilização" mais próxima de casa, resolveu dar uma volta e familiarizar-se mais com o local. E caminhou uma meia hora pelas ruas vazias, com apenas algumas moedas no bolso e sua cesta vazia. Lembrou-se do velho dormindo na calçada e resolveu voltar à praça e ver se ele já havia acordado. As pessoas já começavam a acordar e as ruas da vila começavam a ficar mais cheias. Quanto mais se aproximava da praça, mais pessoas voltavam seus olhares para a jovem, que começou a se sentir hostilizada. Então ela apertou o passo, mas acabou tropeçando com sua longa saia em um paralelepípedo mal colocado no chão. Derrubou a cesta e as moedas e, caídaxd, sentiu os olhares insolentes se transformarem em olhares de deboche. Por sorte, uma figura familiar a havia estendido a mão: o jovem padeiro.

– Cuidado! Aqui as ruas não são bem pavimentadas.

– Obrigada...

– Ofélia... Não é?

– Sim...

– Nessa vila os nomes circulam muito rápido... Principalmente um nome tão único como o seu.

Ofélia ficou sem palavras, seu rosto pálido corou. Aquele jovem padeiro era certamente muito simpático... Pensou em perguntar a ele seu nome, mas não conseguiu vencer a timidez naquele momento. Mas ela nem precisou falar nada, porque ele já tinha entendido toda a situação. Como ele era compreensível, pensou. E então ele mesmo se apresentou.

– Bom, meu nome é Bento. Sou daqui da vila, por isso sei que você é de algum outro lugar. Devo admitir que fiquei curioso com a sua história... Se quiser me contar algum dia, estarei na padaria, pela manhã e pela tarde, todos os dias. – Agora ele próprio começava a se envergonhar com a quietude da moça. Por que ela não fala nada? Pensou. E então fez um sinal com a cabeça e fez como se fosse voltar à padaria.

– Bem... Eu nasci em um lugar bem distante, e bem diferente daqui. Moro em um chalé dentro da floresta... Se quiser me visitar, procure a macieira que fica na beira da floresta, e eu indicarei o caminho. Estarei te esperando à noite...

Bento ficou intrigado com a jovem, ela era muito enigmática. Mas ele sempre gostou de mistérios e, como o bom aventureiro que sonhava em ser quando criança, aceitou o convite. Não fez perguntas, apesar das coordenadas de Ofélia terem sido bem vagas, e apenas assentiu com a cabeça. Algo dentro dele o fazia achar que encontraria o caminho intuitivamente. Além disso, conhecia aquele mato desde a infância e, se bem se recordava, havia um espaço muito propício para construir um chalé, próximo aos cinamomos. Ele mesmo quando criança havia construído um pequeno forte com os galhos soltos, onde brincava com os amigos. Absorto em seus pensamentos, nem percebeu que Ofélia já havia se retirado furtivamente. Passou o resto do dia ansioso com a visita que faria a ela, e não conseguia parar de pensar na beleza enigmática daquela jovem moça. E como em um piscar de olhos, ele já estava apaixonado.

A jovem também ficou muito pensativa sobre o rapaz. Seus traumas passados, porém, sempre a alertavam que não deveria se entregar a ninguém de forma tão precipitada. Lembrou de sua primeira paixão, que não a correspondeu como esperava. Era um explorador nato, ela por sua vez era muito serena. Ele não quis deixar o mundo para ficar com ela, e ela não quis sair do lar para segui-lo. Esse rapaz, inclusive, era um de seus distantes amigos nômades, cujo grupo Ofélia já havia deixado para trás. Ela sentia dentro de si que deveria permanecer na floresta, e que era ali que encontraria seu propósito de vida. Aliás, toda aquela história de nomadismo era só uma desculpa para encontrar um lugar que realmente pudesse chamar de lar. E ela encontrou um ali, no meio do mato, cercada pelos cinamomos e amoreiras, pelas borboletas e andorinhas.

Chegou em casa e viu Gerônimo deitado no sofá. Assim que abriu a porta, ele acordou e veio até ela, pedindo carinho. Ela o afagou por muitos minutos, enquanto contava a ele como havia conhecido um jovem tão intrigante na vila, e que ele viria à noite para jantar, se tudo ocorresse como esperado. O gato só miava, mas ela entendia tudo que ele dizia. Gerônimo não havia gostado muito da ideia, mas sabia que ela não era boba e se ele fosse má pessoa, ela não o teria convidado. E então ela pensou no que serviria para o jantar, havia muito pouca coisa pra cozinhar em casa, e ela não fazia ideia do que o padeiro gostava de comer... 

OféliaWhere stories live. Discover now