O Grimório

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 Quando acordou na manhã seguinte, vestiu sua longa saia verde e se dirigiu à cozinha para fazer o café da manhã. Era por volta das 9 horas, e o Sol já brilhava forte. "As roupas dele já devem estar secas", pensou. E então Gerônimo começou a miar desesperadamente enquanto a guiava para o quarto de hóspedes, e qual foi a sua surpresa ao perceber que ambos já haviam partido? Ofélia se entristeceu e sentou ao sofá. Ela já estava sozinha de novo. O que ela tinha feito para eles irem embora tão rápido? Achou que eles tivessem apreciado sua hospitalidade mas, pelo visto, havia se enganado. E então o Sol subitamente foi coberto por nuvens e começou a chover. E chovia vigorosamente, como se os céus quisessem inundar a Terra. E junto com a chuva, Ofélia desabou em melancolia.

Seu gato Gerônimo entendia bem suas emoções. Veio de uma família de 7 irmãos, alguns tomados pelas mãos cruéis dos homens maus, outros aconchegados em lares dos homens bons. O que o atormentava era a certeza de que nunca os encontraria de novo. Uma certeza que Ofélia buscava sempre negar, quando se tratava de sua própria família. Mas Gerônimo era um dos únicos gatos nas proximidades daquele vilarejo. Muitos de seus colegas felinos haviam sofrido nas mãos dos rudes habitantes da Vila das Andorinhas, em especial aqueles de pelos escuros. Aqueles que descobriam a fama do local, sempre fugiam para bem longe. Mas ele decidiu ficar ali mesmo, com aquela jovem humana que, desde o primeiro dia, sabia que seria sua melhor amiga.

Ofélia passou mais uma vez pela porta do quarto do beliche, lamentando que os modestos irmãos haviam partido. Viu um bloco de notas em cima da cômoda com uma folha rasgada e ao lado, uma caneta tinteiro largada. Então olhou para cama e só aí percebeu que o pijama estava dobrado em cima do colchão de baixo, onde havia um bilhete: "Helena e Francisco", e embaixo dos nomes havia um humilde desenho dos dois com uma mão levantada para cima, como quem diz "Adeus!". Admirou a tentativa deles em escrever e não a abandonarem sem dizer adeus, mesmo que não soubessem dizê-lo com palavras.

Pegou o pijama, e levou-o de volta para a caixa de lembranças deixada por seu pai. Ao lado havia uma caixa de sua mãe, que resolveu abrir por curiosidade. Ela fez um chá de menta e sentou-se para ler um livro que encontrou na segunda caixa, que ainda não tinha aberto. Tinha a capa marrom e as páginas estavam velhas, em tons de sépia. Na capa estava escrito "Grimório" com letras escritas por algum objeto cortante, na caligrafia de sua própria mãe. Era muito difícil de ler, pois as páginas estavam manchadas e algumas até mofadas, o que lhe dava muita alergia. Molhou um algodão com um pouco de vinagre e passou nas páginas mofadas. O ideal era que deixasse no Sol para secar, mas este estava escondido naquela hora.

Então, após algumas horas, pegou e abriu novamente o tal "Grimório". E de repente, como num passe de mágica, as letras pareciam vibrar com uma cor preta intensa. As folhas estavam leves como o vento e o odor de mofo havia sumido. Quando começou a ler, deparou-se com algumas imagens de seres e animais que desconhecia, receitas de doces, um guia sobre ervas, outro sobre cristais, outros sobre feitiços e rituais... Isso tudo em um só livro, entre outras coisas que Ofélia jamais imaginou terem a ver uma com a outra. Mas se fazia sentido para a mãe, haveria de fazer sentido para ela também. Então ela começou pelo prefácio, que também estava escrito na grafia da própria mãe.

"Neste livro, uma breve apresentação das faculdades espirituais com as quais trabalho diariamente. Que possa guiar os caminhos dos jovens feiticeiros que descendam de minha família e aqueles que são queridos por ela. Para aqueles que ainda desconhecem a própria capacidade de fazer magia: por favor, não se assuste. Há muita beleza por trás da nossa trajetória, nós, bruxos e feiticeiros . Não se deixe enganar pela falácia mundana de que a magia é ruim. A magia é neutra. Os seres humanos a usam com a intenção que desejam e, por isso, se torna perigosa. Então suplico àquele que tomar posse deste livro: muito cuidado com as pessoas ao seu redor. Não deixe a beleza da magia transformar-se em ruindade e só faça, acima de tudo, o que gostaria que fizessem com você."

Ela havia se intrigado com o prefácio, e mal podia esperar para devorar todo o resto do livro, quando alguém bateu com força em sua porta. Estranhou, pois estava chovendo muito e, qualquer um que quisesse chegar ao seu chalé precisaria andar vários minutos na chuva, passando por uma trilha escorregadia e cheia de pedras na floresta. Então ela ligeiramente escondeu o livro embaixo do sofá e se dirigiu à porta. Quando abriu, lá estava Bento, encharcado.

– Ofélia... Me desculpe chegar assim, mas eu preciso falar com você, com urgência.

– Claro, pode entrar. – Ela saiu do caminho e indicou sutilmente o caminho do sofá. Se ele se sentasse na poltrona, poderia ver o livro no chão. – Mas antes, vou pegar uma toalha para você se secar e uma manta para se sentar. Só espere um minutinho. – Muito obrigado...

– Aqui está. Aceita um chá? O que lhe traz aqui nessa tarde tão chuvosa?

– É uma longa história, mas preciso muito de sua ajuda. É o seguinte: estou devendo algum dinheiro para um senhor que mora na cidade vizinha. Eu ainda não devolvi o dinheiro por completo e estou sob ameaça de morte...

– Você quer dinheiro emprestado?...

– Não, na verdade eu quero um lugar para me esconder. Há tempos que ele não vem à Vila e com certeza não vai saber do chalé que você construiu. Sei que aqui estarei seguro. Você acha que seria possível que eu permanecesse aqui? Seria apenas por alguns dias, talvez uma semana... No máximo. Eu prometo.

– Bom... Eu não sei... Você não acha que seria melhor apenas devolver o dinheiro?

– E eu pretendo fazer isso..., mas ainda preciso de alguns dias para consegui-lo de volta. Por favor, me ajude...

Ofélia não sabia o que era certo a se fazer. Ela certamente não tinha dinheiro o suficiente para quitar dívidas de ninguém. Não pretendia deixar Bento desamparado, mas também não pretendia esconder um fugitivo debaixo do próprio teto e arriscar a própria vida. Não sabia o que faria caso este senhor batesse em sua porta com um grande cutelo nas mãos. Mas havia uma coisa que ela sabia menos ainda: dizer não. 

OféliaWhere stories live. Discover now