liz

[carta, parte 1]
          
          Você se foi, né? Não importa quantas vezes eu chore, você se foi e nunca mais vai voltar. 
          Não adianta bancar a garotinha abandonada, a filhinha de papai, nem nada disso... Você se foi pois eu não bastava, certo?
          Eu sei que eu errei por ter nascido quebrada, mas eu era só uma criança. Você fez bom uso do seu livre arbítrio...
          Até onde vai o livre arbítrio? Você ainda é dono de si quando há outra pessoa - um serzinho indefeso - dependendo de ti? Ainda há liberdade completa quando sua liberdade vai desmantelar uma vida? Desmontar uma personalidade que nem se formou ainda é algo muito intenso para ser decidido tão arbitrariamente.
          Eu achei que se eu fingisse ser comunicativa e amável, você me amaria - eu não estaria mais quebrada, certo? Uma fada madrinha teria me consertado em tempo recorde.  Tudo que eu consegui foram duas noites ao teu lado, e puf! Desabei. Perdi meu chão, saí da realidade e me fechei mais que antes. 

[carta, parte 2]
          
          Eu só queria ter nascido boa para você, sei que não é pedir demais.
          Também sei que não foi só por eu ser defeituosa que você foi embora, tá? Sei que você não é tão mau assim. Você voltou, certo? Treze anos depois, você voltou, e quando percebeu que eu só havia piorado e era uma pilha de traumas e desilusões que não conseguia se comportar devidamente, você decidiu ficar longe. É por isso que eu te culpo. Por isso que eu te culpei, por quatro anos, pai.
          Eu abri até um processo. Eu queria justiça. Eu merecia justiça. Eu só queria dançar... O senhor prometeu e não cumpriu, como todas as outras vezes, e eu precisava de justiça.
          Mas agora é hora de deixar ir, não é?
          Segurar isso não vai fazer eu ser boa o suficiente, não vai apagar todas as inseguranças inscrustadas na minha alma, não vai apagar o abuso que eu sofri e que eu infligi a mim mesma... Não vai desmanchar as cicatrizes. Finalmente, é hora de deixar ir...
          Eu te perdôo, não por você, mas por mim. Eu te perdôo porque eu mereço ter paz. 
          Você não tem mais poder sobre mim, afinal, você decidiu ir embora. Hoje eu decido te deixar partir.

Dias quentes doem como o inferno, derretem minha pele e fazem meus órgãos rastejarem sob ela. Joana que apreciou os beijos das labaredas, por muito passara, muito sofrera; mas eu não sou Joana. 
          Alguém me diz que cada dia ruim um dia valerá a pena, mas a que custo? Não creio que alguma felicidade valha ver-te sofrer tantas moléstias, e sofrer junto. Estamos juntos. Depois de tantos anos, estamos juntos, e sequer podemos ser felizes por isso. Não é com desprezo que falo que nada nesse mundo tem a potência de me ferir tanto quanto você, é com confiança. Eu estou entregue a ti, que com um pestanejar pode me fazer prantear uma madrugada, mas não faz. 
          Sei que estamos juntos, sei que eu te adoro e que tu adora-me tanto quanto, sei que jamais me magoaria de propósito, por isso me entrego. Se não fosse por completo, não seria de maneira alguma, entende? É assim que eu posso oferecer agora.
          Meu coração peleja para continuar batendo, minhas lágrimas gritam querendo escorrer, mas você vale tudo isso. Você, um dia, vai olhar para trás e perceber que sim, eu te amava, e só por isso ergui barreiras e escudos para te guardar; mas ah, não foram as barreiras e escudos que me magoavam, não. Era a desgraça de saber que você sofria, apesar deles.  
          Sempre que encontro-te caído, trato de ajudar-te a levantar, curo-te as feridas e lhe ofereço meu colo, a única coisa que posso fazer... Então por que o nega? 
          Não há nada maior no mundo do que a certeza que me amas, e eu amo-te. Por que lutas contra isso? 
          Sei que há insegurança e medo, mas eu não seria capaz de levantar uma arma em seu nome contra mim.

nesse mundo infindável
          não existem duendes e fadas
          existem demônios e pessoas
          tentando se salvar
          sabendo que ao sobreviverem
          têm que matar quem os persegue.
          
          é uma grande corrida em círculos,
          nós 
          perseguimos os nossos demônios e lutamos para
          permanecermos sãos.
          enquanto os demônios correm de nós,
          também nós caçam 
          para estarem vivos
          precisam de nossa sanidade em mãos.
          
          eles fogem e perseguem 
          nesse jogo infinito
          onde a presa também é a caça
          e não lutamos pela sobrevivência.
          
          -insanidade

meu coração está partido, e bate. acima de todas as expectativas de meus carrascos, meu coração ainda bate, lenta e dolorosamente, mesmo que eu já tenha tentado fazer com que ele parasse.
          não é como se eu tivesse um motivo maior ou fosse uma heroína. eu sou só uma pessoa comum em meio a mais alguns bilhões, lutando contra si mesma. em algum momento eu me perdi e ainda estou procurando o caminho de volta. eu não sou uma mártir, também. 
          eu peco, me magoo e machuco pessoas. eu sou garoa e furacão, e tão poucos sabem amar água que é tanto calma quanto tempestuosa. eu não sou perfeita, longe disso. contudo, não sou o diabo.
          eu amo, cuido e aprendo. sou a mão que acaricia enquanto todas as outras estapeiam. eu sou gentil. 
          meu coraçãozinho partido ainda bate, espirrando sangue nas paredes e se rasgando mais a cada batida. eu preciso de ajuda e até isso me negam. insistem em fazer que meus órgãos funcionem sobrecarregados porque uma morte não seria o suficiente, precisa ser uma morte dolorosa onde meu próprio ser se corrói em amargura.
          e eu não mereço isso. eu não sou boa, mas nunca fui má. eles tampouco são maus. São só pessoas errando e errando e errando e tentando acertar mas jamais o fazendo.
          e acima de tudo, meu coração continua batendo, eu continuo amando, me magoando e sendo só mais uma em meio a bilhões 

a única coisa que deixei claro é que eu já estava morta 
          
          por que o sangue não é bonito
          quando escorre da face alheia?
          quando mancha os lençóis do vizinho? 
          quando nas chamas do churrasco incendeia?
          
          por que as drogas não são ilícitas 
          quando enchem o corpo infantil?
          quando magoam os insanos?
          quando destroem quem foi gentil?
          
          por que o peso só é aprovado 
          quando é baixo?
          quando dá choque?
          quando causa desmaio?
          
          por que o corpo só é admirado
          quando estão bêbados?
          quando sentem pena?
          quando sentem desejo?
          
          eu sempre enchi minha cabeça 
          com essas perguntas sem resposta
          com esse futuro sem sina
          com essa ferida exposta
           
          sinceramente, em meu túmulo
          espero que não se perguntem
          "por que ela foi tão cedo?"
          e sim
          "por que isso a mim confunde?"
          

sala de terapia
          
          e o Coronel anjo diz
          "não lhes dê ouvidos, 
          você é boa, 
          com todos seus sentidos
          é furacão e é garoa"
          
          então o tenente demônio berra
          "não somos partidos.
          espelhados da sua imagem, a criação,
          em todos os sentidos és tu como nós, 
          só traz destruição"
           
          após todo esse debate 
          meu corpo excomungado declara empate.
          cansado de ser jogado de canto para lado 
          sem ter rumo desenhado
          sem ter nenhuma ilusão.
          
          no fim do expediente 
          é só mais um paciente 
          saindo pela tangente 
          na cabeça, o tenente 
          e o Coronel no coração.
          

Um, dois, três, quatro 
          E muitos mais

eu queria que ficasse tudo bem. queria te fazer feliz e te bastar
          mas não basta
          nada o faz
          
          mas eu te amo, no fim, só isso que isso importa
          (vampiros nunca irão te machucar)

você também é minha pessoa favorita, não importa o que digam