~ Amber ~
Fiquei no quarto andando de um lado para o outro, prendendo e soltando o cabelo, roendo as unhas e suspirando alto. Apesar de ter odiado vir pra cá, estar com uma grande raiva da minha avó e com certeza achar babaquice o que ela fez comigo, não consigo deixar de ficar preocupada. Estou com medo de ter acontecido alguma coisa com ela depois que eu saí, afinal, a mulher simplesmente caiu sentada na cadeira com a mão sobre o peito e deixou por isso. Tentei ajudar, só que, o orgulho da mesma falou mais alto, ou talvez só tenha sido a raiva do momento.
O momento passou e Nathalina não pode apenas continuar passando mal sem me deixar ajudar. Se alguma coisa acontecer enquanto eu estiver em baixo desse teto nunca mais vou me perdoar, e muito menos a minha mãe vai me perdoar.
Encarei o relógio na mesinha vendo que passou uma hora que eu vim para o quarto. A casa está silenciosa e isso só está aumentando a minha inquietação. Tinha que ser de família o orgulho falar mais alto do que as próprias necessidades? Estou querendo ir lá e ajudar ela a força, mas não sei se devo. Vai que minha avó me manda sair de novo ou joga alguma coisa em mim. Mordi o lábio inferior pela ansiedade e o medo que estão me rodeando. Não era para uma mulher com o triplo da minha idade ser tão cabeça dura quanto eu.
Bom, agora já sei quem puxei.
Me aproximei da porta, abrindo uma brecha na mesma. Olhei para o pequeno corredor e não vi ou ouvi nenhuma movimentação, ruídos ou algo do tipo. A casa está estranhamente quieta, o que está me frustrando demais. Abri totalmente a porta, andando na direção da sala vazia e em seguida para a cozinha que também não tem ninguém. Me apressei em ir para o banheiro que também está vazio como o quintal e até mesmo o sótão. Dei uma olhada rápida na rua que não mostrou nenhum sinal de Nathalina.
Respirei fundo e tentei engolir o nervoso ao lembrar do quarto dela, que minha avó fez questão de dizer que é proibido entrar lá desde o momento em que cheguei aqui. Se a mesma não estiver nesse último cômodo, então não sei se ligo para a polícia ou para a minha mãe. O problema é dizer o que aconteceu sem mostrar que no fundo foi um pouco de culpa minha, apesar de não ter nenhum remorso alojado em minha garganta. Nathalina pode ter passado mal, só que, no fundo eu sei que ela mereceu aquelas palavras.
Não consigo me arrepender.
Parei de frente para a porta de madeira e aproximei a mão da maçaneta, a segurando com medo de um ruído estrondoso que faça minha avó dar um pulo de lá e vir para cima de mim. Suspirei silenciosamente, girando o punho devagar e ouvindo o chiado da madeira contra o meu toque. Não pensei duas vezes em empurrar a porta, vendo o escuro do quarto ser invadido pela luz fraca do corredor.
Minha atenção foi para a mulher sentada no chão, de costas pra mim. Em seu colo, uma caixa rústica e com a aparência bem antiga. A tinta que da para notar que já foi azul, agora está totalmente desbotada em quase todos os lados, dando espaço para o marrom da madeira. Fiquei com o olhar ali, apenas observando de longe até Nathalina virar o rosto para o lado.
- O que foi? Não cansou de dar uma de rebelde e veio aqui buscar uma outra confusão? - Sua voz amarga me fez pressionar os lábios. - Bom, saiba que não estou com cabeça para outra discussão, menina. Já falou o que queria, então pode ir embora.
Meu olhar continuou sobre ela por mais alguns segundos até eu acender a luz do quarto, fechando a porta atrás de mim. Me aproximei lentamente, com medo de um grito, xingamento ou um movimento bruto, mas a mulher permaneceu parada, com a atenção sobre a madeira desgastada em seu colo. Sentei ao seu lado em silêncio.
Seus olhos inchados entregaram o choro de alguns minutos atrás.
- O que quer, Amber?
- Fiquei preocupada, você passou mal e pediu para que eu saísse. Não pude ignorar
Nathalina pareceu pensar por alguns segundos.
- Por que me fez fazer todas essas tarefas? Estava apenas me testando? Por que? - Não evitei perguntar.
- Você é mesmo uma garota burra
Revirei os olhos.
- Não vamos começar uma outra briga aqui - Avisei, já sentindo vontade de deixar ela sozinha de novo.
Minha avó riu e começou a tossir um pouquinho, pondo a toalhinha sobre a boca.
- Odeio poeira. - Disse, mostrando irritação pela tosse. - E eu não estava te testando, menina. Estava te fazendo reagir
Franzi as sobrancelhas.
- Não entendo - Neguei com a cabeça devagar.
- Seus pais te deixaram no quarto durante vários dias e isso só estava piorando a sua situação. A cada dia eles esperavam que você fosse melhorar, mas aqueles idiotas não sabem que ninguém se cura sozinho sem ajuda. Precisei te deixar ocupada por mais de uma semana para que você finalmente voltasse a raciocinar direito e coloquei o rádio alto na intenção de alguma música ajudar também. Se deu certo ou não, não sei. A questão é que agora você está falando, passou a comer direito, ganhou peso e ter um amigo aqui te ajudou a prestar mais atenção nas coisas de novo. Ser aérea não combina com uma garota grossa como você, então já que está viva de novo, pode ir
Engoli a seco enquanto as palavras começaram a se embaralhar na minha cabeça. Não nego que me manter ocupada e exigir as coisas despertaram os meus sentimentos e o meu próprio raciocínio novamente, só que, ainda não consigo entender.
- Diana me ligou e disse o que aconteceu para você ficar assim, que tudo começou com um vídeo e aquele mesmo garoto que entrou com você no banheiro
A falta de ar me atingiu. Já faz tanto tempo que eu não me permito pensar nele, que pronunciar seu nome virou algo proibido para o meu subconsciente e ter qualquer lembrança também. Falar dele com Nathalina e relembrar um momento, aquele momento me deixa totalmente tensa. Não quero ter que pensar sobre isso, não quero pensar nele!
- Então pedi para ela te trazer para cá - A mulher continuou, dando de ombros em seguida.
- Por que?
- Além de você ser a minha neta? - Ergueu uma sobrancelha.
Neguei com a cabeça.
- Você sumiu da família, ficou longe da gente por anos, perdeu festas de aniversário, não ligou, não fez questão de visitar e nunca me deu um parabéns. Como quer que eu acredite nisso? Que pediu para a minha mãe me trazer apenas porque sou a sua neta?
- Mas foi isso o que aconteceu
- Não acredito em você. - Falei por fim.
- Eu sou responsável pelo que eu falo. Se você acredita ou deixa de acreditar não é a minha responsabilidade.
Evitei enfiar as unhas na palma da minha mão pela frustração por causa dessa conversa.
- E é por isso que eu não acredito. Olha como você age, as coisas que fala. Sempre diz as coisas pela metade e acha que os outros vão estar satisfeitos com as suas meias verdades. Preferia que não me dissesse nada ao falar pela metade como está fazendo comigo desde o aniversário da minha mãe
- Você é uma neta bem ingrata - Disse com desdém.
- Prove que estou errada, diz uma coisa completa sem ficar deixando palavras soltas no ar
- Não te devo nada, Amber.
Ri com amargura, negando com a cabeça mais uma vez. Essa conversa não está nos fazendo ir para lugar nenhum, pelo contrário. Minha raiva só está aumentando.
- Eu só quero uma conversa, vó. Uma conversa com você me contando alguma coisa sem mentir e sem omitir nada como fez todos esses anos
- Pelo seu jeito de falar, já tem perguntas específicas em mente, não é?
Meu silêncio foi o suficiente para Nathalina saber que sim, eu só quero respostas para as minhas perguntas que sempre foram deixadas entreabertas.
- O que você tinha com o meu avô? - Perguntei com a voz baixa.
- Acredito que já saiba do casamento. - Ergueu uma sobrancelha.
Cansada de ouvir as coisas dessa forma, sem uma explicação, sem uma história, sem a porra de uma conversa descente, apenas levantei sem falar nada. As pessoas sempre esconderam as coisas de mim e eu sei disso, mas algumas realmente me marcaram, como essa por exemplo. Estou cansada de saber de tudo por cima, do básico ou só do indiferente. Meus pais fazem isso desde sempre e os meus amigos também. Não preciso de mais ninguém na minha vida fazendo o mesmo.
Respeito a privacidade que minha avó quer ter com a sua vida, o problema é ela contar o mínimo e achar que está fazendo mais do que obrigação. Não quero ouvir as coisas cortadas e lidar com elas sem saber de um jeito mais aprofundado. Ela me julgou por querer ensina-la sobre sentimentos e amor, mas em momento nenhum a mesma provou já saber ou teve uma conversa comigo, me provando que estou errada. Sinceramente, no fundo, eu preferia estar mesmo. Quem sabe assim eu não sinta que Nathalina é tão vazia quanto eu estava.
Me aproximei da porta e quando encostei na maçaneta, fiz menção em gira-la.
- O seu avô... - A voz dela me fez parar. - Ele foi um homem incrível, o melhor que eu poderia ter
- Então por que nunca disse que realmente era apaixonado por ele?
- Porque não era por ele que o meu coração batia.
Fiquei travada, tentando colocar minha mente para raciocinar e digerir as palavras ditas pela mulher sentada no chão atrás de mim. Todas as perguntas que eu tinha me feito durante esses anos foram para o ralo, abrindo lugar para as novas que são o dobro da quantidade.
Virei com as sobrancelhas franzidas e sentei ao seu lado novamente.
- Amava outra pessoa enquanto era casada? - As palavras saíram mais rápido do que eu consegui impedir.
- Em minha adolescência eu sempre sonhei em ser psicóloga e até li alguns livros para tentar me aprofundar mais nisso. As escolas eram puxadas e minha família nunca foi rica, Amber. Os materiais e as roupas eram caros, então quando completei quatorze anos me obrigaram a abandonar os estudos e todos os meus sonhos, só que, eu não desisti. Continuei lendo muito sobre psicologia na esperança de algum momento voltar a estudar, mas quando completei meus dezenove, já trabalhando para ajudar a sustentar a minha família e os meus irmãos comigo sendo a mais velha deles, fiz uma amiga que me encorajou a estudar escondido. Eu trabalhava por meio período então ela disse que poderíamos estudar juntas em uma escola mais afastada para que a nossa família não descobrisse. Seu nome era Stella, e ela queria muito ser médica
- E o que aconteceu?
- Me apaixonei por ela.
Entreabri a boca para responder, mas não tive palavras que pudessem soar de um jeito bom.
- Naquela época, as mulheres não tinham nenhuma oportunidade, ou pelo menos quase nenhuma. Principalmente as de família pobre como nós duas. De começo conseguimos estudar por um ano sem que ninguém soubesse, e acabamos nos apaixonando igualmente. Claro que ninguém sabia e era um sonho. Vivíamos juntas, íamos para tudo que era canto e na saída da escola sempre passávamos em uma pequena casa abandonada localizada numa rua escura no caminho para demonstrar a intensidade do nosso relacionamento... - Nathalina sorriu tristemente. - Prometemos nos casar, sem nos importar com o que a nossa família ou os outros diriam, apenas nós duas seríamos o bastante
- Então... - A encorajei a continuar.
- Então em um dia de descuidado, a minha mãe descobriu após ver nós duas trocando carícias em um bosque. Meus pais eram católicos e apesar de não serem totalmente fanáticos como os da Stella, ainda eram tementes a Deus e abominavam isso, como qualquer um no século vinte. Ela me ameaçou, dizendo que se não parassemos com isso que ia contar para a família da Stella, e eu sabia que isso ia resultar na expulsão dela de casa, como me expulsariam na minha se o meu pai soubesse, só que, nosso amor era tão forte que não paramos. Vivemos isso por três anos, e quando eu completei vinte e um, arrumaram um noivo pra mim
Meus olhos continuaram fixos no dela, tentando entender até a última palavra.
- Franklin era um ótimo homem e sempre me respeitou, mas eu nunca deixei de amar a Stella. Quando contei do casamento ela ficou furiosa, queria que fossemos embora juntas de qualquer maneira e eu disse que se conseguíssemos uma casa em um lugar longe, eu ia sem pensar duas vezes. O casamento aconteceu no mesmo ano e no final dos meus vinte e dois ela já tinha arrumado tudo, uma casa em outra cidade, uma forma de ir em um dia que ninguém fosse suspeitar e sem avisar a nenhuma alma viva, só que, eu descobri que estava grávida do seu avô
- Teve relações com ele? - Perguntei como se não fosse óbvio. Claro que é uma pergunta idiota, mas eu não sei se também conseguiria.
- Tive que ter. Minha mãe sempre inspecionava a minha vida de casada, e por mais que no começo eu fingisse dizendo que já tinha feito, ela estava esperando um neto como prova que eu tinha esquecido a Stella e virado "uma mulher de verdade" - Fez aspas. - E apesar do Franklin ser compreensível, estar casada por dois anos e meio e não ter nada estava deixando tudo mais complicado, fazendo ele ficar com pé atrás e achar que eu estava o traindo. Eu já não trabalhava mais porque o sustento vinha só dele e muito menos estudava, então tive que me entregar para ele não me seguir e descobrir sobre a Stella...
Nathalina acariciou a caixa em seu colo, como se os flashbacks não parassem de aparecer.
- Eu queria ter sido uma esposa fiel, mas eu não o amava dessa forma. Quando contei para ela que estava grávida, as coisas apenas pioraram. Stella disse que não ia me deixar viver um casamento infeliz, então quando eu estava com sete meses de gestação, fugimos enquanto o Franklin trabalhava. Mal conseguimos chegar até o centro da cidade e um carro me atingiu com tudo assim que tentei cruzar a rua com ela atrás de mim. Pedi para que Stella fosse embora nos últimos segundos antes de eu desmaiar e ela ficar sobre mim, para que ninguém a reconhecesse, e quando cheguei lá toda machucada descobri que a pancada foi tão forte que eu tinha perdido o bebê
- Ninguém descobriu que você estava tentando fugir?
- Fomos apenas com a roupa do corpo, sem nenhuma mala. Íamos pensar nos detalhes depois e eu não queria levantar suspeita, apenas com uma bolsinha com documentos. Falei para a minha família que tinha ido ao centro por desejo de uma fruta que não tinha onde moravamos e quando atravessei, fui atropelada. Eles acreditaram, mas eu fiquei arrasada por ter perdido aquele bebê. Stella sempre me deixava feliz, mas quando eu estava naquela casa sozinha ou dormindo ao lado do seu avô, percebia como estava infeliz pela gravidez perdida...
Ela deu uma pausa, e então continuou.
- Com vinte e quatro anos de idade e três de casada, descobri que fiquei grávida de novo. Não tentamos fugir desde então, e quando contei a novidade, Stella se animou de novo com a ideia, só que eu não. Não queria correr o risco de perder o bebê mais uma vez e quando disse que não ia fugir, ela não quis acreditar, e então me deixou. Mudou de cidade e nunca mais me procurou. Sua mãe nasceu e apesar de eu estar mais preenchida, ainda sentia falta da Stella. Tentei descobrir onde ela tinha ido, mas não consegui, então fui viver a minha vida
- E em questão ao meu avô?
- Ele sempre foi um anjo comigo. Dava tudo para eu e a Diana, nos tratava como duas rainhas. Nunca me obrigou a nada e fazia questão de se manter presente até a sua mãe ter dezenove anos e o Franklin falecer por problemas cardíacos. Eu fiquei arrasada, senti que tinha perdido o chão e a minha vida, não por ter perdido um amor, um marido ou o pai da minha filha, mas por ter perdido o meu melhor amigo que sempre fez de tudo por mim. Diana ainda estava estudando e já tinha um ano de namoro com o seu pai. A família dele sempre foi rica, então chegou no ponto deles pagarem por boa parte dos estudos dela, e claro que eu não me opus. Queria que a minha primogênita fizesse o que eu não consegui fazer.
Inclinei a cabeça para o lado, com o coração pesado pela história.
- Então você nunca conseguiu achar a Stella?
- Ah, menina. Depois que a sua mãe saiu de casa e foi morar com o James, eu encontrei uma amiga dela na rua e como ninguém nunca soube de nada, apenas da nossa amizade, me disse onde a Stella estava morando. Não pensei duas vezes e fui atrás dela, foram três dias de viagem e quando cheguei lá, um homem atendeu dizendo ser o marido. Perguntei sobre ela...
Nathalina fungou, limpando as lágrimas que desceram sem parar.
- E ele disse que ela tinha morrido de infecção fazia um ano...
Meu coração apertou, me deixando com os olhos cheios de água. Pensei em perguntar alguma coisa ou dizer algo, só que, como poderia? O peso dessa história, a história da minha avó me detonou por dentro, então apenas coloquei minha mão sobre a sua, recebendo um sorriso triste. Nathalina desviou o olhar e abriu a caixa, me entregando uma foto amarelada e com um pouco de mofo dos lados.
Encarei a mesma, vendo duas mulheres abraçadas e rindo, com o amor as rodeando. Stella era linda.
- Eu cheguei tarde demais...
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