Quando abro os olhos a claridade me deixa cega. Fecho os olhos novamente e depois de alguns segundos retorno a abri-los.
-Vic? - ouço Ethan me chamar. Eu o sentia ao meu lado, segurando minha mão delicadamente, mas a voz dele parecia muito distante. - Você está bem? - ele pergunta e eu o encaro com os olhos ainda doloridos pela luz.
-Estou - respondo baixo. - Achei ter visto... alguém familiar - digo incerta e ele suspira.
-Suponho que achou ter me visto - o ouço.
Aquela voz. Aquela maldita voz.
Direciono meu olhar para o outro lado do lugar onde eu estava, e lá estava ele, tão bonito quanto eu me lembrava.
Cubro meu rosto com as mãos, apoiando meus cotovelos nos joelhos, não querendo o encarar.
-Podemos ficar a sós, Majestade? - ele pergunta e abro uma fresta na minha cortina de mãos para ver o que Ethan falaria, e como reagiria.
Mas ele apenas engoliu seco desconfortavelmente confuso e se levantou.
-Estarei na cozinha, jantando com minha família - Ethan avisa e sai fechando a porta azul de algum lugar do castelo onde eu nunca estivera, supus ser a enfermaria.
-Por onde esteve? - a voz dele soava mais gélida do que eu me lembrava. Ou ele só estava zangado.
-Importa? - sussurro e o ouço suspirar. Seus passos se aproximam e ele senta na poltrona em minha frente, descubro meu rosto e ele me avalia, mas não diz nada.
-Importa - ele responde. - Você me abandonou aqui, sozinho. Com ela.
-É, abandonei. Mas que ela? - pergunto confusa e ele bufa com um humor falso.
-Vai fingir que não a conhece? Que não sabe dela? - o loiro fica de pé novamente demonstrando sua inquietação e esfrega o cabelo encaracolado, que diversas vezes eu mesma cortei.
-Do que você está falando, Adam? - pergunto ficando de pé também.
-Isso é baixo até para você! Onde esteve!? - ele esbraveja.
-Em Loxigan! Desde que me lembro, sua mãe berrou comigo e disse que você tinha um futuro brilhante se não fosse a mestiça. Ela me mandou embora, e eu fui - respondo no mesmo tom.
-Não - ele resmunga. - Minha mãe amava você como uma filha.
-Ah, é. Eu reparei - digo irônica.
-Victória - ele prende meu olhar no seu. - Você anda falando com Carli?
Ah, pela Lua! Saia desse lugar de uma vez! - a ouço praguejar.
-Por que? - rosno.
-O que você lembra daquele tempo? - Adam questiona com o cenho franzido, o mesmo desde que me lembrava, com as marcas de expressão apenas um pouco mais aparentes.
-De tudo, por que não lembraria? - pergunto de volta e ele resmunga algo que não entendi.
-Qual o nome do meu pai? - Adam pergunta desconfiado.
-Caleb - respondo rápido. - O que você tem?
-Errado, é Calum - ele diz impaciente. - É bom ter um papo com a sua loba. Não é o tipo de coisa que a minha Vic esqueceria - Adam se joga na poltrona ainda com os olhos grudados em mim entupidos de mágoa.
Ignorei o pronome possessivo e chamei Carli.
Do que ele está falando? - pergunto e ela bufa, quase ouço ela revirar os olhos também.
Nada com nada, é um louco que não superou um fora.
-Não vai querer saber o que ela disse - falo e ele suspira.
-Não lembra de nada que tenha acontecido três dias antes de ter ido embora? - ele pergunta bravo, não sabia se era comigo, com Carli ou com ele mesmo.
-Será que dá para desembuchar? Eu quero ir para casa - resmungo e ele me encara.
-A cidade inteira lembra - Adam fala. - Eu não entendo.
-Vai mesmo ficar brincando de mistério? Qual é o problema, Adam!? - xingo e ele bufa coçando a nuca.
-Você deu a luz a nossa filha, Victória! - ele diz no mesmo tom, mas incrédulo, de certa forma.
Talvez eu saiba algo sobre isso... - Carli murmura.
Fale - exijo bufando e voltando a sentar.
Você deveria me agradecer. E nunca deveria tê-la deixado entrar nesse continente. Esse humano nojento só ia nos rebaixar cada vez mais! - ela se defende.
Fale, Carli - rosno novamente.
Era Lua cheia, não dava para ver mas eu sabia - Carli começa. - Você entrou em trabalho de parto mais cedo que o esperado. Estávamos com muita dor, você estava morrendo. Eu assumi o controle para fazer o trabalho de parto para você não morrer, seu corpo em forma humana não ia aguentar, mas o meu ia - ela conta. - Quando ela nasceu... eu entrei em pânico. Ela não nasceu na forma lupina, e eu sabia que seria um fardo ter não só um marido como uma filha humana! Então três dias depois eu assumi o controle novamente, você estava fraca demais para andar ou até mesmo para se manter acordada, e nos levei de volta até Malvon que concordou comigo me ajudando a plantar memórias falsas dos seus últimos dias com essas pessoas. E eu escondi essas memórias de você para que nunca soubesse dessa...desgraça e...
Cale a boca, já falou o suficiente - resmungo.
Apesar de não ter notado, eu começara a chorar. E chorava descontroladamente como eu nunca havia feito em frente à ninguém. Adam apenas me olhava, agora com um pouco de tranquilidade no olhar.
O encaro tentando encontrar palavras com o significado que eu queria mas nada parecia suficiente para tamanha dor que eu sentia.
-Ela escondeu isso de você, não é? - ele pergunta, parecia prestes a chorar também. Apenas assinto com a cabeça. - Sinto muito ter gritado com você, eu não tinha esse direito.
Faço exatamente o mesmo movimento de antes, então desvio o olhar cobrindo a boca com as costas do punho fechado.
-Eu preciso de um tempo - minha voz sai horrível. Rouca e esganiçada, como se eu tivesse gritado por horas. - Sozinha.
Adam assente e sai porta a fora sem dizer nada.
Me deito na cama macia encarando o teto com perguntas as quais eu não sabia se queria a resposta.
Uma filha.
Eu tenho uma filha.
Eu nunca quis filhos.
Como isso aconteceu? - quero dizer, eu sei como... - mas como?
Respiro fundo, uma...duas...três... várias vezes. Mas eu estranhei as coisas que passavam pela minha cabeça.
A Victória de um ano atrás estaria fazendo as malas para fugir de qualquer responsabilidade que poderia vir à tona.
Mas os meus principais pensamentos e questionamentos só giravam em torno dessa criança: o que ela gosta de comer? Como passa o tempo? Com quem ela fica que não está com Adam? Ela tem alguém que chama de mãe?
Essa última de doeu tanto quanto pensar que eu perdi os primeiro passos, o primeiro sorriso, a primeira palavra e tudo que envolve "primeiro" na vida da minha primeira e única filha.
Carli, espero que você saiba que não vai sair por um bom tempo... - resmungo, mas ela me ignora.
Antes que eu pudesse começar a pensar em mais coisas, alguém bate na porta.
-Eu quero ficar sozinha, se não seria pedir demais - resmungo alto o suficiente para que quem quer que seja, ouça.
-Vim ver se vai tomar café conosco - ouço a voz de Ethan, soou magoada e um pouco melosa, mas nada que eu pudesse realmente me importar no momento.
-Eu estou bem - digo confusa pelo fato de que passei a noite em claro. - Obrigada.
Pude ouvi-lo suspirar duas vezes antes de voltar a falar.
-Adam está aqui, ele quer conversar - Ethan avisa e pude ouvi-lo se afastar. Mas uma das sombras permaneceu no vão inferior da porta.
-Posso entrar? - ouço a voz familiarmente delicada.
-Tá - resmungo e a porta se abre, ele entra e a fecha novamente.
-Como está? - Adam pergunta me encarando com certa preocupação.
-Como estou? - pergunto de volta.
-Parece cansada. E parece a minha mãe nos primeiros meses da nossa filha - ele resmunga e eu viro o rosto para a parede tentando evitar qualquer lágrima.
Quando não respondi, ele prosseguiu:
-Suponho que queira conhecê-la. Ela quer muito - Adam diz.
-Ela já sabe falar coisas assim? - pergunto com medo da resposta.
-Ela grita todas as noites até dormir pedindo pela mãe. Eu tive apenas uma namorada depois de você, e ela nem chegava perto da moça - Adam suspira. - Me admiro que ela deixe minha mãe tocá-la.
-Como está sua mãe? - pergunto.
-Gostou de saber que está na cidade - ele diz sentando na mesma poltrona de ontem e eu engulo seco. - Vai conhecer nossa filha, não vai? - Adam pergunta. - Você vai amá-la, ela é incrível...
-Eu não posso - resmungo sentindo um buraco negro que sugava o ar dos meus pulmões se abrir dentro de mim quando ele me encarou.
- O que? - a voz de Adam falha.
-Eu... Adam, daqui um alguns dias eu vou lutar na arena contra o homem mais poderoso do meu continente - começo e posso ouvi-lo prender a respiração, como sempre faz antes de receber uma notícia da qual não tem certeza de que vá gostar. - Até a morte - finalizo e ele engasga.
-Não pode - Adam fica de pé. - Não pode fazer isso com ela.
-Não mesmo. Não posso ir até ela, mostrar que estou aqui e que a quero, e então um mês depois fazê-la lidar com o luto. Ela está melhor sem mim, Adam - digo e ele coça a nuca em sinal de nervosismo.
-Não - ele repete. - Ela estaria melhor com a mãe dela do lado dela.
-Eu não posso fazer isso com ela...
-Faça por ela - Adam sussurra.
-Qual o nome dela? - pergunto tentando mudar de assunto.
-Lembra daquela noite... a nossa última noite antes de você engravidar? - ele pergunta e eu espremo os olhos. - Estávamos deitados no antigo galpão de peixaria do vovô, em um monte de pele de animal e feno, você brincava com os meus dedos enquanto nossas mãos estavam entrelaçadas - ele continua e eu me remexo na cama. - Eu perguntei que nome você daria para uma criança, se estivesse grávida - Adam me encara e solta um pequeno sorriso de canto. - Você simplesmente disse que não estava - ele diz e abaixa a cabeça rindo. - Eu insisti até que você me deu um nome...
- Heike - falamos em uníssono e ele sorri. - É um nome muito bonito - digo e ele concorda.
-Quando ela descobriu que foi você que escolheu, ela esbugalhou os olhos na minha direção quase implorando a história de como você era - Adam conta com o olhar distante.- Ela sempre foi apaixonada por histórias, principalmente as que envolviam a mãe dela.
- Quantos anos ela tem?
-Quase três - ele responde e eu suspiro. - Ela faz aniversário em dois meses.
- Suponho que ela tenha Ahgnares no sobrenome - resmungo e ele assente.
-Ahgnares e Glaviros - Adam fala e eu ergo a cabeça para encará-lo. - Você sempre foi e sempre vai ser a mãe dela, precisam compartilhar o mesmo nome já que não vai se casar comigo - ele diz e por um momento pensei ver decepção em seus olhos, mas ela logo se foi.
-Ethan é o meu companheiro - digo baixinho.
Em um movimento rápido, Adam ficou de pé com a coluna ereta.
-O que está fazendo? - pergunto confusa.
-Se está com seu companheiro e ele é o rei, suponho que um dia virão a se casar, se casar com o rei automaticamente você se torna uma rainha...
-Adam - começo mas ele me interrompe.
-Eu lhe devo respeito, não estamos mais juntos e você está sujeita à realeza...
-Nós temos uma filha, e um passado - digo com os dentes cerrados. - Se fosse para começar com essa droga de regras de etiqueta já teria começado desde que nos conhecemos porque, caso não saiba, fui adotada pelos reis de Sargenis e fui nomeada princesa há quase cinco anos sendo a terceira na linha de sucessão ao trono - xingo e encaro seu rosto pálido.
-Por que nunca me contou? - ele pergunta.
-Você iria me tratar diferente, e eu estava cansada da realeza - respondo e ele assente devagar voltando a sentar.
-Cansada da realeza... - ele começa com um tom irônico. - Significa que não vai casar com ele? Não vai se tornar rainha?
-Não significa nada. Eu perdoei ele, temos uma boa relação - digo, mas ele ainda me encarava com esperança no olhar.
- Vai casar com ele, ou não? - Adam pergunta.
-Eu não sei nem se estarei viva até o mês que vem - respondo ríspida e ele endireita a coluna sentindo a frieza na frase como se eu o tivesse esfaqueado.
-Não foi o que eu perguntei - Adam suspira.
-Não tenho resposta para o que perguntou - respondo.
-Então tem uma possibilidade tanto de casar-se com ele quanto comigo? - ele pergunta e eu engasgo com ar.
-Está me pedindo em casamento?
-É o que parece? - ele resmunga sarcasticamente e eu bufo.
-Não vou me casar - respondo e Adam bufa. - Não até que eu sinta necessidade. Eu tenho um bom título e não precisei me casar para isso, nem sequer ligo para títulos. E supondo que eu sobreviva à Thails, não vou precisar estar casada com você para ver minha filha, vou? - pergunto e Adam parece pensar.
-Se eu disser que sim você vai vê-la igual... - ele resmunga consigo mesmo e eu concordo. - E minha mãe com certeza vai ficar do seu lado, então obviamente você não precisa se casar comigo para ver Heike.
-Quem é Heike? - Ethan fala depois de abrir a porta e entrar.