Frio, mau cheiro e falta de ar. Se não se lembrasse perfeitamente as horas que passou se arrastando pelos dutos de ventilação, acharia que estava em um caixão. Embora cheirar tão mal quanto um cadáver fosse uma rotina na vida de Ânya, isso era algo que ela nunca iria se acostumar. Ser uma Recicladora de Lixo Nível Dezessete tinha muitas vantagens, mas passar a maior parte do dia fedendo não era uma delas.
Entretanto, não havia nada que pudesse fazer a respeito no momento, além de seguir adiante em sua empreitada. As paredes metálicas do duto lhe congelavam os ossos e a garota se amaldiçoava pela milésima vez por não estar usando seu macacão de embrex. Ao menos o tecido com tecnologia NYX era desenvolvido para proteger o corpo humano de fatores externos como frio e calor.
Só mais um pouco. Se não tivesse errado a última curva a direita como suspeitava, não devia faltar muito para respirar ar puro. Ou melhor, tão puro quanto podia ser ar reciclado. Só precisava continuar se arrastando por mais alguns metros e...
E o mundo sumiu debaixo de si quando uma das placas do duto se soltou e ela despencou para o desconhecido.
Felizmente o desconhecido era bem familiar e o amontoado de lixo amorteceu a sua queda. Contudo, ficou ciente que levaria consigo um lembrete para prestar mais atenção no caminho quando sentiu algo afiado rasgando a carne de seu braço esquerdo.
Por reflexo, tentou prender a respiração para sufocar o grito de dor, mas como já estava sem ar devido ao impacto da queda, pontinhos pretos surgiram em sua visão.
Respirar. Calma e profundamente. Era isso o que tinha que fazer.
Após alguns minutos finalmente conseguiu se sentar e um sorriso brotou dos lábios da garota ao constatar que sua mochila estava ao alcance de suas mãos. O braço esquerdo doeu quando o esticou, mas cuidaria do ferimento depois. Sua única preocupação era verificar se nenhuma de suas valiosas quinquilharias tinha se quebrado.
Rapidamente constatou que tudo estava intacto e desceu da pilha de lixo alegremente, afinal não teria prejuízos.
Tudo ao seu redor estava em silêncio e sorriu mais ainda. A vantagem de ser a única funcionária em um setor repudiado por todos era que podia ficar horas ausente e ninguém notaria contanto que entregasse o trabalho esperado no fim do mês.
O sonido do alarme indicando o fim do expediente ressoou e Ânya correu para tomar seu banho antes de ir para casa.
Depois de desligar todas as máquinas, Ânya deixou o seu setor e se uniu aos demais trabalhadores nos corredores do centro de reciclagem com um sorriso satisfeito no rosto.
- Ânya, minha querida, só mesmo você para sair do pior setor de trabalho com um sorriso alegre desse!
- Olá, Sra. Nancy, como foi o trabalho hoje no Nível Três?
- Exaustivo como sempre! -uma pausa e Ânya sabia o que viria a seguir. - Quanto a amanhã, eu entenderei se não...
- Não se preocupe! Irei tomar conta das crianças para que a senhora possa ir visitar a sua irmã! Estarei lá às onze.
- Muito obrigada, minha querida! Você é um anjo!
Apenas alguns passos depois, outra voz chamou o nome da garota:
- Ânya, amanhã...
- Eu não esqueci, Sr. Dom! Irei fazer faxina no seu apartamento amanhã às sete. -respondeu dando um tchauzinho.
Outros passos e...
- Jovem Ânya, aquela geringonça de fazer comida estragou de novo! Será que poderia...
- Sr. Antony, sabe que sou melhor estragando coisas eletrônicas do que arrumando elas, mas vou arrastar o Lipe amanhã a noite no seu apartamento para ele consertar para o senhor!
- Muito obrigada, menina! -agradeceu o senhor de idade avançada seguindo pelo mar de gente.
- Amanhã é domingo, moça trabalhadora! Não deveria trabalhar tanto, muito menos de graça! -disse uma voz que tentava soar severa a esquerda de Ânya. - Deveria descansar um pouco!
- Essas pessoas não têm ninguém para ajudá-las, Dona Amélia!
- Você tem o coração mais generoso que já vi! Depois que cuidar das crianças da Sra. Nancy, passe em meu apartamento para tomar chá com biscoitos!
- Muito obrigada, Dona Amélia! Eu vou mesmo!
Depois de se despedirem, Ânya pegou um atalho e seguiu por um corredor deserto a caminho do trem bala que a levaria para casa.
Após pressionar o brinco em sua orelha direita, deu a voz de comando:
- Projetar tela. Ativar sensores de movimento e fazer chamada para Jasper.
No segundo seguinte, uma tela digital já havia se projetado a frente da garota e um rosto surgia diante dela.
- Olá minha rata de esgoto preferida, já tem a mercadoria?
- É claro que sim e vai te custar cem mil dracmas.
- O combinado era cinquenta.
- Essa quinquilharia deu muito mais trabalho do que você deu a entender!
- Artefato, Ânya! Artefato!
- Cem mil ou jogo a quinquilharia no triturador! Me ligue quando tiver o dinheiro! Encerrar chamada.
Quarenta minutos de viagem no trem bala e mais algumas paradas pelo caminho depois, Ânya finalmente estava parada em frente a porta do minúsculo apartamento que dividia com sua numerosa família. Depois de ter sua retina, digital e voz checadas, entrou dentro de casa largando uma sacola no chão enquanto avaliava o conteúdo de sua mochila. Havia muitas quinquilharias para catalogar e não perdeu tempo em escanear tudo com o dispositivo de seu anel.
O primeiro deles era um objeto de madeira com cordas em um formato esquisito.
"Violino. Instrumento musical usado na era pré-ascensão. Se tornou obsoleto no ano 25 da Era da Ascensão." Informou a voz robótica do escâner.
Então isso era um violino, pensou Ânya. O Sr. Kim iria adorar voltar a ver um desse.
"Máquina fotográfica. Objeto popular usado para capturar imagens na era pré-ascensão." Dizia o escâner sobre o objeto seguinte.
- Tenho certeza que nossos captores de momentos 10D são muito melhores que essa coisa!
- Oi, Day, quer me ajudar? -Ânya perguntou a irmã.
- Que bom que já está em casa, meu amor! -sua tia entrou na sala seguida das outras crianças.
- Sua benção, tia! -Ânya se levantou e baixou a cabeça respeitosamente.
- Que a proteção e a força da ascensão estejam sempre com você, meu amor. -disse sua tia Dara fazendo a letra A com o dedo no ombro esquerdo da sobrinha. - Chegou uma encomenda do seu pai para você essa tarde!
- Sério?
- Ânya, o que tem na sua sacola? -Day perguntou com uma voz desconfiada.
- O nosso jantar.
- E por que o nosso jantar está se mexendo?
- Boa pergunta. -respondeu Ânya. - Pensei que tinha matado ela.
- Matado o quê?
Mas antes que a jovem tivesse a chance de responder, o jantar em questão resolveu fugir de seu cativeiro e o caos foi total no pequeno apartamento com todas as crianças gritando e subindo em cima dos móveis.
- O que é isso? -Dara gritou quase histérica protegendo um dos filhos nos braços.
- É uma galinha! -Ânya respondeu enquanto tentava pegar a ave que corria para todos os lados.
- Mas ela tem penas!
- É assim que galinhas de verdade são quando não são geneticamente modificadas!
- Ela deve estar contaminada!
- Duvido muito! Ela está mais gorda que a gente!
Um clique na porta indicava que o tio tinha acabado de chegar! Se ele visse a galinha ainda viva e com penas, Ânya estaria seriamente encrencada. Entretanto, a ave demonstrando mais inteligência do que se era esperado, se enfiou debaixo de um móvel e lá ficou bem quietinha. Todos fingiram estar fazendo qualquer outra coisa.
- Ânya, onde está o seu irmão? -o tio perguntou tão logo colocou os pés dentro de casa. - Vocês dois irão participar da seleção para guarda-costas da princesa!
- O quê? - o tio tinha pirado de vez. - Eu sou uma garota, lembra tio?
- Por que acha que treinei você e seu irmão desde que nasceram? Esse ano pela primeira vez irão selecionar um rapaz e uma moça para serem os guarda-costas oficiais da princesa herdeira.
E Ânya achando que a galinha seria o maior de seus problemas naquele dia...
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No início desse capítulo teremos o avatar da Ânya e no capítulo anterior, vou postar o avatar do Christopher. se eu esquecer, me cobrem kkkk. Não se esqueçam de votar na estrelinha ^_^ E também comentem o que estão achando dessa história. ^_^