-É, estou bem... - suspiro.
-Bem mesmo? - ele insiste com um sorriso de lado, como o de quem vai aprontar alguma coisa.
Apenas mando-lhe um olhar de aviso e ele sorri, agora abertamente demonstrando os dentes estupidamente retos e brancos.
-O rei vai dar um baile para a corte amanhã, são poucas pessoas, mas são importantes. E como você acabou de chegar e é de costume Ahgnérico receber visitantes da melhor forma possível, você é a convidada principal do rei. Ele já disponibilizou um quarto para você - Ethan diz e quando repara que vou negar ele continua. - É errado, e visto como falta de educação negar... - Ethan avisa.
-Isso é manipulação, ham! - resmungo e faço um gesto para que ele comece a me guiar até o castelo, ou seja lá onde eu vá ficar.
-É por um bom motivo - ele diz sorrindo, apenas o encaro com os olhos semifechados. - Poderei vê-la em uma roupa decente, e sem toda essa sujeira - ele diz entortando o nariz.
-Está me chamando de fedida? - eu pergunto fingindo estar horrorizada. E ao ver que ele levou a sério começo a rir.
-Pelas estrelas, achei que me bateria! - ele diz rindo comigo aliviado.
-Ficar presa em uma gaiola como um animal te faz cheirar como um... - digo rindo e ele acompanha, mas depois me encara.
-Ele prendeu você em uma gaiola? - Ethan pergunta olhando para frente.
-Foi só uma semana, isso não é nada... -minto. A última semana foi a pior coisa que eu já vivenciei depois da morte dos meus pais. Eu vi meu povo ser morto lentamente, e a cada um deles que eu via morrer... vomitava até as tripas. E os guardas faziam questão de deixar os corpos apodrecendo ao redor da gaiola.
-Muita coisa acontece em uma semana, Victória - ele diz me olhando de esguelha.
-É - resmungo e abraço meus ombros para aquecer-me.
-Já estamos chegando - ele avisa. - Você provavelmente vai conhecer a minha irmã... Ela é uma funcionária no castelo - Ethan diz e eu concordo com a cabeça. - Na verdade todo mundo na minha família trabalha lá, mas nem todos em "contato" com os quartos e salões.
-É o negócio da família? - pergunto e ele vira a cabeça para me olhar.
-É - ele resmunga com um sorriso contido.
-Interessante - resmungo de volta.
Paramos em frente ao castelo, e devo admitir, essa deve ser a única parte de Ahgnares que eu não conheço. O castelo não é nada parecido com os castelos de Loxigan. Aqui o castelo tem apenas um andar, exceto pelas duas torres laterais e a central. O castelo parecia cintilante e brilhoso perante às estrelas. E não haviam portões, o castelo não era bem a casa do rei, um dia alguém me explicou. O castelo é apenas um lugar onde os habitantes se unem em comemorações, o rei vive no ponto mais alto de Maraxe, mais ao norte possível em uma casa de dois pisos, ouvi dizer que ele gostava de ver a Lua, mas foi papo ouvido de pessoas fofoqueiras...
-Vou levá-la ao seu quarto e logo alguém vai chegar para ajudá-la com tudo que precisa - Ethan diz e começa a adentrar o castelo.
Eu mal prestei atenção na decoração interna do castelo, só de ouvir a palavra quarto meus olhos queriam fechar de cansaço.
-O jantar é degustado na sala principal, o rei pede desculpas mas não poderá comparecer, ele pede que você se junte à mim e às outras pessoas da corte em um jantar informal - Ethan diz ao parar em frente à uma porta azul clara.
-Tudo bem... Mas estou louca por um banho - digo e ele sorri compreensível. - Nos vemos na sala principal ou você vem me buscar para me levar até essa sala? - pergunto e ele ri.
-Venho buscá-la, senhorita - Ethan avisa e sorri ao abaixar um pouco a cabeça em um cumprimento, assim ele se afasta.
Entro no quarto e levo um susto ao ver uma garota loira sentada em uma cadeira na escrivaninha enquanto me encarava com curiosidade e animação.
-Estou no quarto errado? - pergunto olhando para a porta e depois para fora.
-Não, você está no quarto certo. Eu sou sua ajudante de hoje - ela abre um sorriso maior que o rosto. - Meu nome é Eveli Ahgnar e sou a irmã caçula daquele bonitão que trouxe você - a garota sorri mais ainda, coisa que eu não achei que fosse possível.
-Ah - sorrio sem graça. - Meu nome é...
-Victória! Eu sei, doida - ela ri abertamente. - Você é a companheira dele. Vi você chegar - Eveli sussurra.
-Você o que? - resmungo confusa.
-Eu sou completamente elfa, vi você chegar - ela diz e eu continuo com o semblante confuso. - No futuro, garota! Eu previ que chegaria - Eveli fala rindo e eu ergo o queixo em sinal de que entendi.
-Sei - resmungo e ela sorri de novo daquele jeito.
-Vamos dar-te um banho e colocar uma roupa decente, não consigo mais olhar para esse pano feio aí - ela ri de si mesma e eu repuxo um lado do lábio em um meio sorriso.
𝔘𝔪𝔞 𝔥𝔬𝔯𝔞 𝔡𝔢𝔭𝔬𝔦𝔰
Acho que eu nunca tinha precisado tanto de um banho como eu precisava hoje. Lavei os cabelos e depois Eveli me ajudou com meus machucados. Ela disse que poderia cicatrizá-los mais rapidamente já que com a minha cura lupina isso levaria alguns dias.
Quando terminei de vestir o tecido cinza, Eve me encarou com um sorrisão.
-Você está perfeita - ela diz enquanto pegava uma escova de cabelo.
-Eve eu preciso que faça mais uma coisa - digo e ela entorta a cabeça ainda com aquele sorriso.
-Claro - Eve senta na cama aguardando meu pedido.
Abro uma gaveta na escrivaninha e tiro uma tesoura da mesma.
-Preciso que corte meu cabelo - respondo e Eve arregalo os olhos ficando estranhamente séria.
-O que? Não! Seu cabelo é tão lindo, Vic! - ela argumenta ficando de pé.
-Eu não quero mais parecer a minha mãe, Eve - admito e ela suspira.
-Quer conversar? - a loira senta novamente na cama batendo duas vezes no espaço ao lado dela.
Respiro fundo e me sento.
-Ela salvou a minha vida, me deu a vida - começo. - Mas acho que não posso manter o legado dela depois de tudo que ela fez. O cabelo... muitos dizem que é a única coisa que lembra ela e eu não quero - digo e Eve toma a tesoura das minhas mãos.
-Não vou cortar tudo, vai ficar diferente, mas não vai tirar sua identidade - ela avisa e puxa meu cabelo para trás o alinhando.
Respiro fundo novamente e ouço a tesoura cortar os fios. Eu via meu cabelo cair no chão devagar e amontoar-se cada vez mais. Queria chorar, mas minha decisão estava correta então não haviam motivos para tal coisa. Eu tinha o que eu precisava, tinha uma lembrança dela, tinha o cordão com uma foto dela e de Jake.
Quando Eve terminou, ela pediu para que eu fosse avaliar o corte.
Apesar dela ter dito que o corte não tiraria minha identidade, eu não conhecia a garota que me encarava no espelho. Meu cabelo caía um pouco abaixo dos ombros e a franja era um pouco mais curta que o resto, ela ficava um pouco acima do queixo. As ondas que ele costumava ter nas pontas não existiam mais, ele estava apenas um pouco rebelde.
-Eu adorei - respondo e Eveli respira como alguém que ficara tempo demais em baixo da água.
-Ai que bom, fiquei com medo que não tivesse gostado - ela respira mais calma e se aproxima. - Você tem muita coragem de fazer uma mudança tão radical, ainda mais ter deixado isso nas minhas mãos. - Ela ri e eu acompanho.
Eve limpou os cabelos sozinha depois de negar cinco vezes a minha ajuda. E depois conversamos um pouco até alguém bater na porta.
-Deve ser o Ethan - ela diz e levanta indo até a mesma e a abrindo. - Oi, tongão - Eve o abraça e dá espaço para ele entrar.
-Oi, chata - ele responde rindo. Ethan entra e me encara dos pés a cabeça com um olhar estranho.
Ethan vestia as mesmas roupas, talvez não tivera tempo para se trocar.
-Você está linda - ele sorri de canto e eu reviro os olhos rindo.
-Obrigada - respondo e Eve abre mais o sorriso. Encaro ela por um segundo e depois volto meu olhar para Ethan que provavelmente fazia a mesma cara assustada que a minha.
- Um corte de cabelo costuma mudar muito uma pessoa - ele diz voltando a me encarar da mesma forma como me encarou na primeira vez que nos vimos, lá na ponte.
-Bom, é só cabelo - respondo e ele fecha a cara de uma forma quase imperceptível, seus olhos ainda mostravam certa diversão.
-Vamos? - Ethan pergunta. - Imagino que esteja com tanta fome quanto eu - ele diz e Eveli ri.
-Ninguém tem mais fome que você, Ethan! - ela gargalha e eu não pude deixar de sorrir. - Divirtam-se, eu vou ver a mamãe. Ela mandou você arrumar o seu quarto, ela foi lá hoje cedo e disse que toda aquela papelada vai matar você sufocado - Eve diz séria, mas logo depois volta a sorrir. - Vejo você amanhã de manhã, Vic. Beijinhos - ela sai do quarto quase saltitando e desaparece por entre os corredores.
-Sua irmã é incrivelmente animada - digo ainda olhando para a porta.
-Todas elas são - ele ri e me oferece o braço, aceito e saímos do quarto.
-Elas? No plural? - pergunto confusa e ele diminui o ritmo ao me olhar.
-Tenho três irmãs - Ethan responde com um olhar orgulhoso. - Estela, a mais velha. Elena, a do meio e Eveli, a caçula. Nasci depois da Estela.
-Sua família gosta mesmo da letra E - digo e ele gargalha.
-Minha mãe brigou muito com Estela quando meus sobrinhos nasceram e ela deu nomes sem E para eles - ele ri e eu acompanho.
-Sua família é bem grande então - observo e pensei senti-lo me puxando para mais perto.
-É, ela é gigante. De certa forma é bom ter vários irmãos, no meu caso irmãs. Meus pais e meu avô odeiam quase mais que eu o fato de ter lhe rejeitado - ele resmunga e eu desvio o olhar desconfortável.
-Então eles sabem - suspiro.
-Eles me mandaram atrás de você assim que descobriram - Ethan conta e eu trinco o maxilar. - Mas eu nunca a encontrei.
-Não era para ser - digo e por fim chegamos à uma sala que apresentava uma mesa enorme, devia ter no mínimo vinte lugares. - E as outras pessoas da corte? - pergunto ao ver a mesa vazia.
-Eles acabaram tendo que comparecer à reunião com o rei. Se quiser, eu posso pedir que levem seu jantar no quarto, entenderei se não quiser ficar sozinha aqui... - ele faz uma pausa pensativa - comigo.
-Não, tudo bem - respondo e ele sorri.
Ethan puxa uma cadeira para mim próximo ao lugar do rei, então ele senta ao meu lado esquerdo, longe da ponta.
-E seus sobrinhos? Como se chamam? - pergunto enquanto um homem de roupa cinza me servia.
-Juni e Tom - ele responde. - Juni é mais velho. Eles são meninos de ouro, Juni tem oito anos, e Tom vai fazer seis daqui dois meses .
-Devem ser uns fofos - rio e ele concorda.
-Você tem irmãos? - Ethan pergunta depois de engolir a primeira garfada.
Mastigo lentamente e engulo, respiro fundo e o encaro com um sorriso fraco.
-Tenho - respondo e ele nota meu pequeno desconforto. - Dois são adotados e três são da parte do meu pai biológico, eu não os conheço... Bom, já vi um deles... - digo e Ethan quase engasga.
-Ahmun? - ele pergunta com os olhos arregalados em descrença.
-É - respondo e ele suspira voltando seu olhar vazio para o prato.
-Eu não imaginava que você fosse a irmã perdida deles... - Ethan resmunga.
-É assim que eles me chamam? - pergunto e ele volta a me encarar, agora com certo carinho.
-É - o elfo responde. - Uma vez eu liderei uma busca em Loxigan. Eles queriam encontrar você mais do que tudo, então investiram todo o salário de guardas para pagar pelos serviços já que a mãe deles não os deixava sair. Dez homens foram para Loxigan, incluindo eu. Mas ninguém sabia da filha de Jake, da menina híbrida - Ethan explica. - Viemos embora achando que você estava morta, que Thails já havia matado você.
-Quando foram? - questiono e ele parece pensar.
-Acho que faz uns quatro anos, não tenho certeza - Ethan diz incerto, mas então ergue o olhar. - Foi no ano em que a rejeitei - ele fala e eu concordo com a cabeça compreendendo.
-Eu vivia em Sargenis, então - digo calma. - Foi no meu primeiro dia lá.
Ethan apenas resmunga desviando o olhar.
-Imagino que tenham ajudado você com ... - o interrompo.
-Com a dor? - pergunto e ele volta a me encarar. - Minha mãe fez tudo que podia naquele dia. Ela não podia fazer muita coisa então me ouviu chorar e gritar até eu finalmente dizer que estava bem, então fomos jantar, ninguém nunca mais tocou no assunto. Mesmo nas noites em que eu gritava, minha mãe nunca questionou sobre você.
Logo que parei de falar me senti idiota por ter contado isso. Nem Malvon sabia o quanto eu havia sofrido, ele nem desconfiava que eu tinha sequer chorado naquele dia.
-Eu sei que dizer que sinto muito não é suficiente - ele começa e eu o encaro. - Não tem nada que eu queira consertar mais do que isso. Eu sei o quanto foi ruim para você, as luas de sangue... as noites de lua cheia. Eu consigo imaginar - Ethan diz.
Antes que eu dissesse algo que o faria se sentir pior, pensei sobre como ele também sentira tudo isso. A culpa era dele, mas até agora Ethan não tentara mencionar o próprio sofrimento, justamente por ser culpa dele, e ele saber disso.
-Ficou mais fácil, o tempo ajudou. Parece rude, mas eu fico grata que não tenha me encontrado - admito e vejo seu olhar triste se cruzar com o meu, quase ouço seu maxilar trincado. - Me tornei a pessoa mais independente que eu conheço, de certa forma então, obrigada - resmungo.
-Desculpe - ele diz desconsertado. Ethan funga e fica de pé. - Nadiel vai acompanhar você até seu quarto. Eu preciso ir... nos vemos amanhã, no café - ele diz e sai quase correndo.
Levanto devagar e vejo um guarda parado perto da porta de entrada à minha espera. Caminho até seu encontro e ele sorri fraco em minha direção.