𝑉𝑖𝑐𝑡𝑜𝑟𝑖𝑎 𝑛𝑎𝑟𝑟𝑎𝑛𝑑𝑜
Já faz quase uma semana que estou em Thails. Presenciei outras seis mortes além daquele homem... Dois lobos, três carmedashes e um feiticeiro. Eu não durmo como antes, não como como antes, tenho certeza que perdi alguns poucos quilos. Mas sei que logo me matarão, por quê? Simples: quase matei sete guardas. E o rei não sabe mais como me castigar, a parte das ameaças sobre minha família não têm mais efeito pois chegou no castelo a notícia de que os quatro reinos se uniram contra o rei então... ele só pode me matar.
-Vá logo - um guarda diz ao abrir minha jaula. As caças não tem mais o mesmo "efeito" pois quase não tem mais o que caçar, além de eu nem ter mais fome.
Saio correndo logo depois de me transformar e corro muito, tanto que quando parei quase rezei para que não tivesse saído do reino. Mas não, eu estava em uma clareira nos limites de Thails.
Deito-me no gramado voltando a forma humana. A possível companheira do meu pai deixou meus pensamentos quando aquele homem falou da própria família. Na noite passada algo estranho aconteceu: Carli falou comigo, coisa que ela não fazia desde as primeiras chibatadas:
Vic? - a voz da minha loba soava cansada e baixa, quase hesitante.
Oi Carli.
Eu andei pensando bastante ultimamente - ela faz uma pausa.
Sobre o que?
Nossa morte - ela diz baixo e eu prendo a respiração. Victória eu não quero morrer sem falar com ele.
Sem chance - respondo. Eu não vou dar o braço a torcer por ele.
Ele é meu - ela implora.
Era - eu digo e antes de silenciá-la ouço seu choro.
Ele sempre será uma parte minha, e quando eu morrer... parte dele morre também, você sabe disso - ela chora.
Tudo bem, vou desbloqueá-lo, você tem uma hora - digo por fim deixando o ar sair.
Assim que desfiz o bloqueio as sensações ruins voltaram, a sensação da rejeição. Algo no meu peito voltava a doer como se fosse a primeira vez, mas me forcei a continuar neutra enquanto o guarda me encarava durante o que ele chamava de tortura.
Companheiro - Carli o chama.
A resposta demora para chegar, mas quando chega, a voz melodiosa que soa em minha mente quase me faz fechar os olhos.
Achei que me odiaria para sempre - ele sussurra.
Eu não odeio, minha humana odeia - ela responde com a voz entupida de dor, a dor da rejeição ela sente quase em dobro.
Deixarei ela conversar com o meu humano se ela quiser - o lobo diz em um suspiro. Onde está?
Não importa - Carli responde desanimada. Não sei quanto tempo eu e minha humana temos... Espero que nos perdoe por nunca termos ido atrás de vocês quando começamos a desenhar o símbolo.
Permita-nos ajudá-las - ele pede com pesar.
Já tem pessoas demais em risco - Carli finaliza. Queria que tivéssemos mais tempo, Rae.
Eu também, minha Carli - ele quase chora.
Engulo o nó que se formara em minha garganta e esperei que a ligação se quebrasse, mas ela não quebrou.
Quero sentir você até seus últimos momentos, se não posso salvá-la - uma voz igualmente melodiosa soa em minha cabeça. Eu soube que não era mais Rae que falava, e Carli já se isolara novamente.
Como quiser - digo e me preparo para receber os açoites.
Nessa noite não havia um motivo exato para que o rei me machucasse, mas suponho que seja mais por diversão própria. Os açoites não eram mais nas costas, elas estavam horrendas - palavras de uma criada que o rei mandara para cuidar dos meus machucados - então o guarda passara a açoitar minhas o pernas. Era até melhor, eu conseguia desviar dos golpes com facilidade, mas um ou outro me faziam sangrar.
Depois de dez golpes eu o ouvia novamente:
Se eu não a tivesse rejeitado isso não estaria acontecendo... - ele xinga.
Não se iluda, isso não tem nada a ver com você - eu respondo.
Não gosta mesmo de mim não é? - ele sussurra.
Não tenho nada contra você - responde e ele suspira aliviado. - Mas também não tenho nada a favor.
Já fazem quase cinco anos, me chamou por quê exatamente? - ele pergunta.
Carli queria se despedir de Rae - digo e pude jurar ouvi-lo fungar. - Ela não gosta de rancor.
Você gosta? - senti a mágoa em sua pergunta.
Te esqueci há muito tempo, como eu disse: não tenho nada contra você - respondo. - E não, não gosto de rancor embora tenha de algumas pessoas.
Você foi feliz, Victória? - ele pergunta e eu quase me espanto ao saber que ele sabe meu nome, mas apenas relevo.
Minha felicidade foi limitada a dois anos eu acho - digo relembrando do ano com a minha família e dos tempos atuais onde vez ou outra me diverti com Malvon, ou com Ash e Nick, e o encontro dos meus irmãos.
Sinto muito - ele responde. - A deixei para que pudesse encontrar alguém melhor...
Não tem mais importância - digo desanimada. - Mas eu poderia ter decidido se existia alguém melhor, você não me deu escolha.
Me culpo todos os dias por isso - ele suspira.
Não se culpe. Seja feliz, se não por você, por mim - digo por fim e ao não obter uma resposta me permito deitar no pano/cama e encarar a lua até o sol aparecer.
*
Ouço um galho quebrar e vejo que cochilei na clareira durante meu tempo livre de caça. Fico em posição de ataque ao ver uma sombra na entrada da floresta, a fronteira com Sargenis.
Então vejo os olhos castanhos familiares de Nicholas.
-Vic... - ele sussurra desacreditado avaliando meu vestido antes branco agora sujo de sangue e terra.
-Oi, Nick - me aproximo um pouco mas me detenho na linha invisível que separava os dois reinos, e ele faz o mesmo ficando do outro lado.
-Ah, que bom que está viva. Seus irmãos ficarão tão felizes quando você voltar e a Ash! Ela tem tantas novidades e...
-Não posso ir com você, Nick - digo e ele me encara.
-Claro que pode - ele ri sem humor.
-Eu tenho um acordo com o rei - respondo e ele bufa.
-Podemos ir todos para Ahgnares, ou Ghornert! - ele teima. - E os outros reis estão dispostos a derrubar Thails...
-Nick, ele nunca vai parar - digo e ele passa a mão no cabelo nervoso.
-Você já parou não é!? Já desistiu de lutar - ele resmunga e eu quase engasgo.
- O que quer dizer? - pergunto.
-Você não faz mais contato, sabia que estava viva porque sentia sua pulsação pela ligação, mas nada de você falando - Nick responde bravo.
-Sinto muito se não conseguia falar durante os castigos, e todo o resto...
-Não, não me venha essas desculpas, sei que passava a noite em claro porque seus batimentos não se acalmavam. Podia ter me dado um sinal...
-Eu não quero mais lutar, Nicholas - ele estremece ao ouvir o próprio nome. - Passei minha vida me escondendo desse homem, como o medo de simplesmente morrer. Isso seria minha salvação agora...
-Quando ficou tão egoísta? - ele esbraveja sem me olhar. -Como seus irmão ficariam, Ashley, Malvon, eu?!
-Podem se virar sem que eu atraia uma guarda inteira. Podem viver sem estarem sempre preocupados comigo ou com o rei... é só dar o que ele quer, o que ele sempre quis desde antes de eu nascer - digo, sem que eu tivesse notado eu já chorava.
Mas não era ele que eu estava tentando convencer, era a mim mesma. O instinto de sobrevivência apurado que desenvolvi enquanto ainda vivia em Glaviros gritava para que eu arrancasse a cabeça do rei assim que o visse. Mas o instinto inteligente dizia para simplesmente parar. Eu vivi sempre ouvindo a Vic sobrevivente, então a decisão não é muito fácil.
-Não seja idiota! - ele berra e eu passo as mãos pelos cabelos. - Sabe o que é?! Você prometeu que me ajudaria a encontrar a minha companheira, prometeu!
-Não pode usar isso contra mim - digo e ele sorri com raiva.
-Você não quebra promessas. E essa obriga você a permanecer viva daqui dois dias - ele diz e eu arregalo os olhos.
-Não! Você precisa cancelar o ataque! - eu avanço contra a fronteira mas não ultrapasso. - Não coloque a vida de mais ninguém em risco! Eu posso conversar com o rei, posso fazer um acordo com ele sobre minha liberdade, ela pode ser limitada no começo mas eu posso convencê-lo depois de conquistar a confiança dele! - Imploro e ele finalmente me encara, vejo seus olhos ficarem azuis vivos demonstrando sua categoria ~ômega~.
Ele demora alguns minutos para acalmar o lobo dele e tomar o controle novamente.
-Por favor, Nick - repito.
Ele assente inerte com a cabeça e se afasta devagar, ainda parecendo transtornado.
Volto a forma lupina correndo como um risco até o castelo rezando para que não tivesse passado muito do meu tempo de caça, eu poderia precisar das minhas horas extras outro dia...
-Vinte minutos de antecedência - o guarda fala e eu quase bufo. - Pena sua primeira caçada ter levado tanto tempo... - ele ri e fecha a grade da jaula atrás de mim.
-Eu quero falar com ela, Gron - a voz do rei interrompe o guarda que abre novamente a jaula e eu saio indo até a porta onde ele me esperava.
-O que você quer? - pergunto sem encará-lo.
-Bom, começamos pelo domínio dos cinco reinos, o poder do escolhido da Lua...
-Por que? - o interrompo e ele sorri ao me encarar. Antes de responder ele senta em seu trono e suspira.
-Já se perguntou por quê até os Carmedashes têm mais território que nós, poderosos feiticeiros? - ele pergunta e eu nego. Então ele explica: -É porque somos mais rejeitados que eles!! Nós, antes temidos e respeitados, somos motivos de piada pelo continente! - o rei fala alto.
-Mas os feiticeiros não são mortos se saírem do reino, não apanham até morrer. Os feiticeiros têm muito mais privilégios que os Carmedashes, de fato - respondo e ele gargalha com escárnio.
-Então acha que eu deveria aceitar que esses demônios assassinos tenham mais lugar de fala do que Eu!? - ele esbraveja se impulsionando para frente no trono.
-Na verdade eu acho que ambos devam ter lugar de fala... - digo e ele me interrompe.
-São monstros! Eles matam sem piedade e sem remor...
-São diferentes de você? - pergunto ainda no mesmo tom. - Ou você se culpa por ter matado meu pai? Ou minha mãe, de certa forma?
-Sua mãe era uma traidora! E nem é sobre seu nascimento que eu falo... - ele resmunga e eu o encaro confusa. - Ela me traiu muito antes de se casar com aquele cachorro - Thails continua, e quando percebeu que eu não o interromperia ele continua: - Ela era a melhor feiticeira da minha corte, até conhecer seu pai. Pobre homem, não sabia onde estava se metendo - ele me encara e eu bufo - Ela era uma golpista habilidosa, eu admito. Recebi golpes até demais daquela mulher.
"Seu pai e a companheira dele queriam uma menina, e só tinham meninos. Então eles foram até uma bruxa, Alina prometeu que eles teriam a bela filha que queriam, mas a própria teria que gera-la por causa do feitiço ser muito forte para a loba, também queria um papel de matrimônio com Jake, seu pai, não me pergunte o porquê. O acordo deles foi que você seria criada pelo seu pai e a companheira dele e uma vez ao mês teria um dia com sua mãe biológica, Alina. Você seria escondida de mim pelo máximo de tempo possível, mas nada ocorreu como planejado, para o seu pai e a companheira, pelo menos. Alina decidiu que não entregaria você, assim entregando o seu pai como traidor e fugindo grávida para Glaviros. Só um ano depois de matar seu pai a companheira dele chegou aqui desesperada para saber do pobre cachorro, e eu descobri que todos caímos no golpe de Alina: eu eliminei o seu querido pai, assim poupando sua mãe de fazer o trabalho sujo, convenhamos, ele nunca a deixaria em paz com você. Mas eu dei a ordem de execução dela de imediato então ela teve oque mereceu. Seu pai deu você a ela, e a companheira dele nem sequer soube o que havia acontecido com a possível filha."
Meu chão pareceu sumir a cada revelação do rei. Minha cabeça doía e eu não conseguia respirar.
-É mentira.
-Parte de você sabe que é verdade - ele diz relaxando.
-Mas isso não diz nada sobre sua sede de sangue - resmungo tentando mudar de assunto.
-Ah não, não diz mesmo. Eu mato porque sei o quanto meu irmão evita matar, faço isso para ele sentir - Thails sorri. - Eu vou responder o seu porquê antes que pergunte: ele matou minha mãe! E a minha irmã - o rei esbraveja.
-Tenho certeza que ele não quis fazê-lo - digo e ele ri.
-Você conhece ele há tão pouco tempo, criança - o rei diz. - Eu conheço meu irmão há cinco séculos. Nesse longo período de tempo os vilões e os heróis mudam e evoluem. Hoje você é um mocinho e amanhã é o odiado, um dia está vivo e no outro está morto! Esse jogo é sobre quem permanece igual e não quem piora ou melhora, porque se você não morre com o tempo, você vê os outros morrerem e isso... Ah isso é quase gratificante perante a reação de Malvon - ele diz e eu quase faço careta.
-Se o jogo da sua vida é permanecer igual, então você está jogando sozinho. Até seu filho muda constantemente, seus guardas, e talvez seus outros filhos teriam mudado se você tivesse deixado - digo e ele fica de pé em um movimento rápido e se aproxima o bastante para eu sentir seu hálito contra minha têmpora.
-Não fale dos meus filhos dentro do meu castelo - o rei diz entredentes.
-Como quiser majestade - digo no mesmo tom e ele se afasta brevemente.
-Tenho uma proposta para você - ele diz finalmente. Apenas ergo uma das sobrancelhas para que ele falasse. - Vai ter um mês de liberdade enquanto decide o que quer, mas dado o prazo, terá que voltar e me dizer sua resposta, se não eu avanço contra os quatro reinos e Camedash. Você deve saber que Ghornert é meu aliado, não é? - ele diz e eu tento ao máximo manter minha expressão neutra.
Ele tem um continente inteiro como aliado... - ouço Carli murmurar pasma.
-Terá sua resposta em um mês - respondo e ele sorri. - Fale...