Cinco Dias (RABIA)

By bark2020

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Quando o isolamento não deixa outra alternativa a não ser dar vida ao que se tentou evitar e mascarar, mas qu... More

Lockdown
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Rotina/V, Pt. 1
V, Pt. 2
Dezembro
Sente, Pt. 1
Sente, Pt. 2
Madrugada
Madrugada, Pt. 2
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[BÔNUS 3]
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[BÔNUS 4: NUVEM]
[BÔNUS 4: ROSA]
[BÔNUS 4: CINCO DIAS DE SOL]
[BÔNUS 4: GELO]
[PARÊNTESIS]

Tombo

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By bark2020


A primeira semana até que foi suportável para Bianca, ela conseguiu passá-la inteira dentro do apartamento, sem descer para absolutamente nada.

Tinha focado em tentar traçar novos projetos e colocar no papel novas ideias. Pensou que, ainda que não tivesse qualquer projeção de quando poderia voltar a colocar em prática suas estratégias, quanto mais ideias ela tivesse, maior seria a chance de resultar algo positivo ao final daquele confinamento.

Limitou o contato com seu público, porém. Não teve muito cabeça para aparecer nos stories e julgou que melhor ela faria se mantivesse seu olhar apreensivo e angustiado fora do foco. Tinha total noção do quanto influenciava seus seguidores e, sendo assim, não queria passar nenhuma energia ruim naqueles dias tão difíceis.

Naquela quarta-feira, porém, ela tinha acordado mais disposta e, aproveitando o impulso, desceu para ir até o mercado e comprar mais pães, frios, frutas e demais produtos perecíveis que já não tinha no estoque.

Durante o processo inteiro ela se manteve reflexiva. Pensou no quanto odiava essa rotina na antiga vida que todos nós vivíamos, costumava delegar todas essas funções aos seus assistentes e sua mãe, quando ela estava por ali com ela.

Aliás, sua mãe... Desde março não via Dona Mônica e nem sua irmã, e quanta saudade ela sentia!

Mas o fato é que sem ninguém, a rotina só competia a ela mesma e ela não podia estar gostando mais de fazer aquilo. Sair para ir ao mercado tinha sido o ápice de sua existência nos últimos dias, e eram esses os novos tempos que vivíamos. Só restava aceitar.

Voltando para casa, seu celular tocou. Parou um instante na rua, colocou as sacolas no chão para pegar o fone, colocou-o no ouvido e atendeu, bastante emocionada.

B: MARCELAAAA! – o tipo Bianca de "emocionada".

M: Oi, Bi! Tudo bem?

B: Garota! Que coisa boa falar com você... – e era tão genuíno – Tudo bem, sim, e você?

M: Tentando sobreviver ao tédio e ao vírus, né? – Suspirou – Mas vem cá, tenho visto que você anda ausente das redes sociais, estranhei e por isso resolvi te ligar...

B: Ah, miga... – suspirou de volta – Ainda tô falhando miseravelmente em aceitar toda essa mudança de vida, então tô quietinha na minha, mas é só um tempinho. Hoje mesmo, acordei ótima, tô até voltando do mercado agora, veja só!

M: Que maravilha! E nem são duas horas da tarde ainda, madrugou! – Debochou.

B: Palhaça você, né, Doutora Marcela! – Fingiu um tom ofendido – Mas vem cá, e onde você está? Na casa dos seus pais no interior?

M: Queria! – Fez uma voz de dengo – Mas não... Fiquei presa em São Paulo mesmo.

B: Ah, MENTIRA! – O tom animado já colocou a amiga em estado de alerta, sabia o que viria – Poxa, nem pra gente ficar confinadas juntinhas de novo, né, Má?

Marcela gargalhou.

M: Você é IN-COR-RI-GÍ-VEL, Bianca Boca Rosa! – O tom divertido alargou o sorriso em Bianca – VonTADE de esmagar e morder essa cara!

B: Ui! Não fala assim que eu vou querer cobrar, hein? – A voz sexy fez Marcela sorrir vencida do outro lado – Tu sabe que eu sempre fui Bicela, né?

M: Sei. Sei, sim, Bi. – Não parava de rir, só piorava.

B: Tu que nunca colaborou e....

M: Tá bom, tá bom, Bianca! Deu! – Cortou, ainda aos risos – Agora você imagina se aquele povo tudo do twitter tivesse te grampeado? A gente não teria um dia de paz até 2030.

B: Isso é... – Gargalhou – Posso fazer nada se eu sou mais influenciável do que influenciadora, super comprei os edits Bicela, tudo pra mim!

M: Eu que odeio dançar junto, sou obrigada a me ver dançando junto com você umas 10x por dia na minha timeline, eu que lute!

B: Ah.... Você é biscoiteira, isso que você é! Dança super... – Engasgou na conclusão da frase.

M: Bi? – Marcela percebeu, tentou retomar a atenção, mas não foi capaz nos próximos segundos.

Segundos nos quais, ao colocar o primeiro pé na faixa de pedestres para atravessar a rua, Bianca percebeu flutuando na direção oposta a figura alta, o cabelo dourado ressaltado pelos discretos raios de sol daquela tarde e, enfim, a voz que sempre lhe perturbaria:

– Boa tarde, Bia!

B: Boa tarde, Rafaella! – Respondeu no susto, mas o suave aceno de cabeça que recebeu de volta e o passo que não se deteve deram a Bianca a confirmação de que não precisaria parar.

E ela continuou andando...

Sem fôlego.

M: Rafaella?

[silêncio]

Bianca terminou de atravessar aquela faixa de pedestre que nunca lhe pareceu tão longa, girou o corpo e por mais alguns segundos observou Rafa caminhando já do outro lado, carregando com ela a tranquilidade que provavelmente ela tinha sugado de Bia ali, no ponto exato em que se cruzaram.

Sim, porque só isso explicava a súbita inquietação e falta de fôlego que lhe invadiram.

M: Bi? – Tentou novamente e finalmente conseguiu.

B: Má, oi... – Tentou se recompor e continuar caminhando – Desculpa!

M: Imagina, tudo bem! Aconteceu alguma coisa?

B: Só me distraí aqui, é... – Chegou ao portão de seu prédio. Entrou, fechou-o e, uma vez mais, parou para observar Rafaella também entrando no prédio dela. Percebeu que ela estava vestida de roupa de academia, e pensou que talvez a loira tivesse ido caminhar... Percebendo-se já perdida novamente na conversa que tentava estabelecer com Marcela, puxou de volta o assunto – Na verdade, Má, se eu te contar você não acredita!

M: Me conta e eu te digo se acredito, ué!

B: Adivinha com quem eu acabei de cruzar? – Soltou, assim que entrou no elevador.

M: Rafaella. – O tom absolutamente óbvio fez Bianca se perder novamente.

B: Co-Como? – Saiu do elevador – Como é que você...

M: Eu ouvi, né, cabeçuda! – Abreviou o sofrimento da pessoa lerda.

B: Ah, claro, eu esqueci que você tava na linha – Gargalhou já entrando em casa – Mas só isso? Não tem nenhum comentário a mais para fazer?

M: Que comentário a mais eu teria, Bianca? Você cumprimentou uma vizinha, e daí? Eu lá sou obrigada a adivinhar que você pegou ela também?

B: É só essa a imagem que você tem de mim? Puta que pariu! – gargalhou – Cumprimentei uma vizinha, sim, Marcela. Vizinha Rafaella Kalimann.

[silêncio]

M: Você foi no mercado comprar mais bebida, fala a verdade! – Ainda não tinha entendido qual era a pegadinha, Bianca só podia estar bêbada.

B: Deus do céu, porque tão pouca credibilidade? – Jogou as compras em qualquer lugar por ali e tentou soar mais convincente – Eu sou vizinha da Rafa Kalimann, Má... Real, oficial!

M: MEU DEUS, É MESMO! – Deu um pulo do outro lado da linha – Lembrei agora dela falando isso na casa.

B: Falou pra você também, é? A obsessão, meu Pai... – Desdenhou.

M: Falou, um dia que você já tinha saído e estávamos todos falando de lugares de São Paulo.

B: Sei... – Soou pouco convencida – Mas enfim, acabou com meu dia.

M: Ai, Bi, deixa disso! Acabou com seu dia por quê? Você só cruzou com a menina na rua e, pelo que entendi, trocaram um boa tarde. Vai morrer por isso? – Revirou os olhos.

B: Morrer eu não vou, claro. Mas sei lá... Encontrar a Rafaella parece que me tira a energia, sabe? – Levou a mão ao pescoço, mexendo a cabeça de um lado para o outro, como se quisesse eliminar a tensão – Eu fico toda errada e incomodada.

M: Tá bom, Bia... – Gargalhou – Me deixou quase dois minutos falando sozinha só porque pronunciou um 'boa tarde'... Sei não, mas isso aí tá com cara é de outra coisa, viu?

B: Como assim? – Sabia que detestaria a resposta, mas realmente não tinha entendido.

M: Só acho que eu ficava assim quando eu encontrava o Matheus, o meu crush da quinta série!

B: É oficial, ninguém me respeita. Nem a que pariu todas as fadas sensatas do BBB20. – Suspirou frustrada.

M: Lá vem você com esse negócio canceladíssimo de 'fada sensata'...

B: O que eu tenho contra você, Marcela, me diz? A não ser me defender te jogando na cara esse seu rolê super falido... Como diria Flayslane, você é toda perfeitinha! – Gargalhou – Enfim, mas é verdade o que eu falei. Encontrar a Rafaella é algo que eu ainda não consigo lidar.

M: Por isso você nunca respondeu ela?

B: Sim, ainda sinto que se formos conversar eu vou ter que gastar uma reserva de energia que, neste momento, eu não posso me dar o luxo de perder. Ela até me ajudou aqui na rua dia desses, mas sei lá... Não dá!

M: Tenta trabalhar isso dentro de você, Bi. Eu também saí da casa com uma certa mágoa das coisas que eu vi a Rafaella falando e o modo como ela votou em mim no meu paredão, mas ela veio conversar comigo e eu deixei tudo de lado. Nós precisamos caminhar juntas, sempre lembrando que estamos todas em processo de evolução.

B: Seu rolê sensato as vezes é um pé no saco, viu? – Revirou os olhos – Mas eu tô ligada, Má, em algum momento isso vai acontecer, eu só preciso me dar um tempo agora para assimilar todas as coisas que estão acontecendo na minha vida e no mundo. Eu sinto que desde janeiro eu me desprendi de mim mesma, sabe? Tem horas que eu não sei mais se eu sou a garota que eu acho que sempre fui, ou se eu sou mesmo a filha da puta que dizem que eu sou... Fazia tempo que eu não me sentia assim, e preciso resolver isso antes!

M: Conheço bem o sentimento. Posso nem te julgar! – falou com pesar – Mas ó, vou ficar aqui torcendo para vocês se acertarem. Vai te fazer bem à beça!

B: Deus te ouça! – Respondeu agarrando Luete, que já ronronava por ali – Mas e os contatinhos nessa pandemia, como estão?

A guinada no assunto fez o sorriso de Marcela expandir consideravelmente do outro lado, e assim elas continuaram ainda por algumas horas, fazendo companhia uma pra outra com uma conversa gostosa, cheia de indiretas de Bianca e fugas de Marcela.

-----

Mais alguns dias se passaram.

Já era noite quando Rafaella saiu na sacada de seu apartamento tentando respirar melhor, e eliminar aquele sufoco todo que vinha sentindo o dia todo.

Tinha acabado de sair de uma ligação com seu irmão que, para variar nos últimos dias, não tinha acabado bem.

A verdade é que Rafa estava sentindo demais a barra de ter que ficar tão longe da família e sozinha em São Paulo. Sentia falta da mãe, do pai, dos sobrinhos e até do mala do irmão, que a todo momento tentava controlar as escolhas e decisões dela.

Além de tudo, estava sofrendo imensamente para estar sempre com o melhor sorriso para suas aparições virtuais nas lives sertanejas para as quais era chamada com bastante frequência. Não aguentava mais passar horas se produzindo para poucos minutos de exposição.

Não tinha cabeça e disposição para aquele ritmo, e foi isso que tentou (sem sucesso) argumentar com o irmão naquela noite, logo depois de encerrar uma dessas malditas lives.

A live tinha sido o tédio de sempre, a conversa tinha fracassado e agora estava ela ali... Sozinha e deslumbrante!

Olhou para o céu e fez uma prece silenciosa. Implorou para Deus serenar seu coração e lhe dar as forças que precisava para enfrentar aquela situação que, de longe, vinha sendo muito pior do que os meses que tinha passado no BBB.

Quando saiu da sacada, pensou em ir para o quarto desmontar a produção, mas ao passar pela porta da cozinha lembrou-se que não tinha o que precisava para tomar seu café da manhã no dia seguinte.

Em um primeiro momento, decidiu deixar para resolver isso no outro dia mesmo. Deu de ombros e foi caminhando até a escada que levava para o andar superior de seu duplex, onde ficava o quarto.

Porém, ao chegar no pé da escada, subitamente mudou de ideia. Lembrou do frio que estaria fazendo pela manhã, do quanto seria insuportável aguentar isso logo depois de acordar, e não pensou mais... Girou o corpo, pegou a máscara que estava pendurada perto da porta, o sobretudo que lhe protegeria do frio, e saiu de uma vez... Antes que a coragem lhe faltasse.

Já no supermercado, ela decidiu que deveria levar mais alguns itens e, assim, evitar uma nova saída pelos próximos dias.

Pegou algumas frutas, duas bandejas de cortes de carnes, temperos que estavam faltando, molho de tomate e no corredor das massas ela se deteve por um tempo, perdida entre tantas marcas.

Agachada para enxergar melhor a prateleira de baixo, Rafa assustou quando sentiu um encontrão em suas as costas.

Olhou pra trás e só enxergou um par de pernas, mas o pedido de desculpas veio em seguida, em tom bastante mortificado:

– Ai, mil desculpas, moça! Eu vim andando de costas e nem te vi aí.

Rafaella sorriu quase conformada, como se em algum nível de sua consciência até estivesse esperando por isso, e finalmente levantou o rosto para dar sua resposta.

R: Não tem problema nenhum... – levantou antes de finalizar:

– Bia.

Bianca arregalou os olhos quando percebeu que, outra vez, era Rafaella que estava ali, cruzando seu caminho.

Aquilo já estava virando uma piada de péssimo gosto, definitivamente.

Sem ter o álcool para lhe defender, uma ligação telefônica para lhe esconder, só sobrou mesmo o olhar de Rafaella, ali tão perto dela e lhe intimidando, como sempre fazia.

B: Nossa, desculpa de novo, Rafaella! – Chacoalhou a cabeça – Tudo bem?

R: Tudo, sim, Bia! – abriu um sorriso que a máscara ocultou – A gente sempre se esbarrando, né?

B: Pois é, e agora literalmente, né? – Rafaella se esforçou bastante para enxergar atrás da máscara branca o sorriso de canto que recebeu, mas só a leve levantada da bochecha direita é que deu a ela a confirmação – Eu sou muito distraída, né, você sabe? Tava aqui toda atrapalhada e acabei topando em você, desculpa.

R: Eita, tá tudo bem, Bia! Mesmo! – Reforçou com o aceno de cabeça.

B: Que bom... – alternou o peso entre as pernas, ainda sem saber muito como reagir – É... Eu já estava indo para o caixa...

R: Vamos juntas, eu também já tinha escolhido o último item que eu precisava. – Saiu empurrando o carrinho, tomando a frente.

Bianca bufou discretamente atrás, mas não se atreveu a ser grossa com Rafaella assim, sem álcool e sem ter sido hostilizada.

Felizmente sem fila por conta do horário, cada uma delas entrou em um caixa, o que Bianca agradeceu mentalmente.

Inclusive, ela até tentou atrasar seu atendimento, sendo bastante lenta em cada ato, tudo na intenção de Rafa terminar antes e, se tivesse mais sorte ainda, ir embora sem causar mais nenhum constrangimento entre elas.

Mas não deu outra: terminaram em perfeita sintonia.

E como estavam indo na mesma direção, seria difícil se ignorarem. Porém, já calejada com os vácuos e patadas de Bia, Rafa só caminhou em silêncio mesmo, sem apressar o passo e ao lado da morena.

B: Acho que compramos quase o mesmo tanto de coisa. – Escolheu as palavras mais neutras que pode, só queria preencher o silêncio constrangedor.

R: É verdade. Esse "trem" de lockdown ainda vai acabar com a gente, né? – sorriu discretamente – Carregar tudo de "poquim" em "poquim" assim é fogo!

Involuntariamente e sem ao menos se dar conta, Bianca alargou o sorriso depois de ouvir o sotaque que pesou na fala de Rafa.

B: Nem me fala, foi maneiro nos primeiros dias cuidar disso sozinha, mas agora eu já quero minha paz de volta o mais rápido possível!

A quantidade de chiados do "carioquês" de Bia também mexeu com Rafaella, e nem que ela quisesse poderia negar, porque ela, sim, percebeu. Mas julgou estar apenas afetada por conversar com alguém fisicamente depois de tanto tempo, sem ser virtualmente.

R: Ah, aproveitando... – achou algo para dizer, finalmente – Eu recebi o dinheiro e a garrafa de vinho, muito obrigada pelo gesto, mas não precisava ser preocupar, não.

B: Que isso, era o mínimo que eu poderia fazer, você foi muito maneira comigo aquele dia. – Respondeu sincera.

R: Fiz o que faria sempre, Bia. É o meu jeito. – Deu de ombros, e o jeito levemente presunçoso de Rafaella se achar a boa samaritana gerou um incômodo em Bianca, mas ela ignorou.

Como o supermercado ficava realmente muito perto dos prédios delas, elas logo chegaram na esquina em que Rafa seguiria mais uns passos adiante, e Bia teria que atravessar na mesma faixa em que se cruzaram uns dias atrás.

B: Bom, eu sigo por ali, né? – percebeu que a deixa era sua.

Não sabendo se ainda era a tal afetação por estar conversando com alguém presencialmente daquela forma, ou se foi a abertura que sentiu Bianca lhe dar pela primeira vez em tanto tempo, Rafaella resolveu usar aqueles últimos instantes que tinham juntas para tentar mais uma vez.

R: Sim, e eu por aqui, mas... – vacilou ainda por um segundo, mas respirou fundo e continuou – Bia, antes de você ir eu posso te fazer um pedido?

B: Um pedido? – Bia deu um passo pra trás e aquilo imediatamente soou péssimo para Rafa, mas ela resolveu aproveitar a injeção de coragem do momento.

R: Sim, um pedido. Aliás, o mesmo pedido. Eu te mandei algumas DM's e... – tentava pescar as reações de Bianca, mas o rosto parcialmente coberto pela máscara dificultava muito – Você nunca respondeu, mas eu queri...

B: Nem vamos começar por aí, por favor! – Bianca nem deixou ela terminar.

R: Por que não, Bia? Eu só queria colocar as coisas em pratos limpos com você, zerar a nossa situação. Não precisamos ser amigas. – Rafaella repetiu o texto que vinha dizendo na imprensa desde que saiu da casa e isso descompensou de vez Bianca.

A gargalhada irônica e nervosa foi a primeira que veio.

B: Claro que não precisamos. E jamais seremos, né, Rafaella? Imagina que você vai ser amiga de alguém como eu... – O tom era nitidamente magoado – Me desculpa, mas o que me parece é que o propósito dessa conversa seria apenas expiar qualquer traço de culpa que você talvez esteja sentindo, ou te fazer ganhar uns pontinhos aí... – gesticulou para o alto – Com Ele e com tudo que você tanto acredita! Eu mesma acho que vou ganhar muito pouco, talvez só mais julgamento... Então eu passo!

R: Bia, não é bem assim, eu...

B: Desculpa, Rafaella, mas não vai rolar mesmo. Eu não tenho a intenção de gastar energia zerando – sublinhou a palavra de Rafa com o tom de sua voz – alguma coisa com uma pessoa que não quer e não vai nunca participar da minha vida. Então você me dá licença.

Bianca cuspiu as palavras e girou o corpo com tanto ímpeto, que todo o desequilíbrio que ela demonstrou naquela conversa com Rafaella refletiu no seu próprio equilíbrio corporal.

Esquecendo do meio fio que separava a calçada da faixa de pedestres, pisou em falso e não foi capaz de se amparar em nada: estabacou-se no chão, espalhando todas as suas compras no asfalto.

R: Bia do céu! – Rafa levou uma mão à testa, ainda transtornada com a sequência de eventos completamente sem nexo, mas reagiu rápido deixando as próprias sacolas na calçada e agachando perto de Bianca – Machucou?

B: A-Acho que não. – ergueu o tronco e colocou-se sentada. Dando-se conta da cena inteira – Olha aí, espalhou tudo!

R: Não tem problema, eu vou te ajudar a catar. – alcançou uma sacola e colocou o que conseguiu alcançar por perto. Mas ainda atrapalhada, abandonou a sacola no chão de novo, e voltou-se novamente para a morena – Consegue levantar?

B: Provavelmente... – Sentiu dor e olhou pras próprias mãos.

R: Eita, ralou tudo! – levantou imediatamente e pegou nos pulsos de Bianca – Vem, deixa que eu te ajudo!

B: Brigada! – Respondeu – Ahhhhhh!

R: O que? – olhou pra baixo, bastante aflita com o grito – Que foi, Bia?

B: Meu tornozelo, caralho! – Tentou colocar no chão de novo. Gritou outra vez.

R: Meu Deus do céu, será que você quebrou, Bia? – Firmou a cintura dela e conduziu-a de volta ao meio fio – Senta aqui, por favor.

B: Ai, não sei. – Percebeu que tinha que se controlar, mas não conseguiu evitar os olhos de encherem d'água – Tá doendo muito.

R: Fica calma, por favor! – Rafa apertou suavemente as mãos de Bia, ajoelhada na sua frente e tentando raciocinar. Pensou uns segundos e levantou rápido – Vamos fazer assim: eu não vou conseguir levar tudo sozinha e ainda te ajudar... – Passou a recolher as compras de Bianca que estavam espalhadas no asfalto – Mas eu te deixo aqui um segundinho com as suas compras, corro lá na portaria do meu prédio pra deixar as minhas lá e volto aqui. Será que você consegue ir até o seu prédio se apoiando em mim?

B: Rafaella, olha só... – esfregou os olhos, bastante constrangida de novamente precisar da ajuda da blogueira que era seu desafeto público – Eu agradeço, mas não precisa. Eu... Sei lá, dou um jeito sozinha. Ou então, se eu puder abusar, você pode pedir ajuda do Reginaldo, meu porteiro, que eu tenho certeza que ele corre aqui pra me ajudar.

R: Bia... – já com as compras todas recolhidas e ao lado de Bianca, abaixou novamente na altura do olhar castanho – Me deixa te ajudar, para de bobagem! Não é hora disso!

Bianca até relutou ainda um pouco dentro de sua mente, mas se perdeu no esverdeado do olhar marcante de Rafaella.

Suspirou antes de dar sua resposta, quase inaudível:

– Tudo bem.

R: Ótimo! – Sem perder mais nenhum segundo, Rafa levantou rapidamente e pegou suas próprias compras – Guenta aí que eu já volto.

Bianca observou Rafaella correndo por uns segundos e não conseguindo novamente encarar o peso da humilhação, curvou o tronco e repousou a testa nos joelhos dobrados. Bateu a testa ali algumas vezes, xingando-se mentalmente.

Não demorou muito, olhou para o lado e Rafa já estava de volta.

R: Pronto. – Estendeu a mão para Bianca – Vem, eu te ajudo.

Bianca só acenou discretamente com a cabeça, e estendeu de volta sua mão.

R: Com cuidado, por favor. – levou a outra mão ao braço livre de Bia, tentando diminuir o peso dela na hora de levantar – É o pé direito, né?

B: Uhum. – A expressão de dor intensificou.

R: Então deixa eu passar para o outro lado. – Rafa girou o corpo e se colocou do lado esquerdo do corpo de Bianca – Se apoia em mim do jeito que ficar confortável para você. – Tentando respeitar o espaço de Bianca, Rafaella apenas afastou os braços do próprio corpo, abrindo espaço para a morena se encontrar.

Bia tentou dar um passo leve com o pé machucado no chão, não conseguiu e pulou em um pé só, chegando mais perto. Como Rafaella guardava com ela uma boa diferença de altura, Bia tentou alcançar o ombro oposto de Rafa, passando seu braço por trás das costas dela e falou com mais vergonha ainda.

B: Acho que você vai ter que me apoiar pela cintura, porque eu vou ter que ir saltitando mesmo. – Abaixou a cabeça, olhando para o pé inútil.

R: Claro... – Deixa eu só pegar as suas sacolas.

B: Me dá umas também.

R: Eu consigo, Bia...

B: Não tem cabimento, eu vou estar com uma mão vazia e eu já tô te dando trabalho demais. – A posição que estavam deixou os olhares das duas muito próximos, e Rafaella não teve forças de negar.

R: Tudo bem, leva essas então. – Passou duas sacolas para Bianca e finalmente apoiou o corpo magro com seu braço direito – Vamos devagarzinho que a gente chega, no seu tempo.

B: Obrigada. – Sorriu timidamente.

E assim elas foram, com extremo cuidado de Rafaella e enorme esforço de Bianca.

A missionária foi encorajando Bia a cada passo, tentando não focar muito nos sons de dor que ouvia da morena, e que inquietavam seu coração de um jeito que ela estava achando difícil de domar.

Mas a prioridade era colocar Bianca em segurança dentro de casa, então não tinha como lidar com isso agora.

Percorrido o longo caminho, enfim elas chegaram no hall do andar de Bianca.

R: Você consegue pegar sua chave? – Apoiou ela na parede.

B: Claro. – Alcançou a própria bolsa – Eu acho que consigo agora, Rafaella, não quero te segurar muito mais tempo aqui, já passei do ponto de constrangimento. Não tem nem palavra mais pra definir o que eu tô sentindo.

R: Ótimo! Se não é mais constrangimento, não tem nem por que essa cerimônia toda. – Revirou os olhos – Deixa eu te ajudar até o final e eu vou em seguida, não tem problema.

B: Tá certo. Tô vendo que tô perdendo todas as minhas resenhas com você hoje, então não vou nem insistir. – suspirou – Achei!

Rafaella só sorriu, pegou a chave da mão dela e destravou a porta. Amparou Bianca de novo em volta de seu corpo e foi caminhando devagar, até colocá-la com cuidado no sofá da sala.

R: Isso... – soltou de vez os braços de Bia – Tá confortável aí?

B: Tá, sim, obrigada.

R: Vou correr e pegar as compras que ficaram no corredor então.

Bianca jogou a cabeça no encosto do sofá e inspirou pesadamente, recebendo Luete em seu colo.

R: Onde eu deixo? – Rafa havia retornado com as sacolas.

B: Pode deixar aí nessa mesa mesmo? – Apontou para o móvel de tampo redondo que tinha na sala – Por favor.

Rafa fez o que Bia pediu e percebeu a outra presença na sala.

R: Que linda a sua gatinha!

B: Luete, Rafaella. Rafaella, Luete. – Apontou de uma para a outra – Estão apresentadas.

R: Linda mesmo! – Abaixou e afagou a gata, que já tinha se aproximado da visita.

Ainda acariciando Lua, Rafa acompanhou com os olhos Bia se curvando para tentar alcançar o tênis do pé machucado. No primeiro gemido que escutou, apressou-se para assumir a função.

R: Deixa que eu faço isso também. – deu um leve sorriso, já ajoelhada na frente de Bia, que já nem tinha forças para contestar. A humilhação tinha drenado toda a sua energia. Quando retirou a meia, Rafaella arregalou os olhos.

B: Que foi? Deixa eu ver! – Ergueu o pé o melhor que pôde.

R: Inchou muito rápido isso, Bia!

B: Tá horrível, né? – Fez cara de choro.

R: Não... – tentou suavizar a expressão, vendo o desespero de Bianca – Tá só bem inchado, mas sei lá... Acho que tornozelo é assim mesmo. Mas talvez... – vacilou.

B: Pode falar.

R: Você não tava conseguindo nem pôr o pé no chão, Bia. Acho que tem que ver se não quebrou nada, ir em um hospital.

B: De jeito nenhum! – Deu um pulo no sofá – Com a sorte q eu tenho, que claramente é nenhuma, veja bem... – Apontou para o próprio pé – Eu vou acabar saindo de lá com o vírus. Não dá, hospital nem pensar.

R: Agora você tá preocupada com o vírus, né? – Sorriu sarcasticamente, já se levantando e azedando de novo o clima.

B: Olha, Rafaella, eu sou muito agradecida por você ter me ajudado, mas eu dispenso o julgamento.... – Devolveu um olhar furioso e reforçou – Aliás, eu dispenso mais um julgamento.

Rafaella passou a mão pelos cabelos e respirou fundo.

R: Tudo bem, desculpa, Bia. – Ajoelhou de novo – Meu comentário foi inconveniente, desculpa. – Encostou as mãos no joelho de Bia, desestabilizando ela.

B: Tudo bem. – Abaixou a cabeça.

R: Você precisar ver esse tornozelo, Bia, não tem outro jeito. – Pronunciou baixo e serena.

B: Eu queria tentar de outro jeito, sei lá... – Afastou o cabelo do rosto – Colocar um gelo, passar um antiinflamatório e ver no que dá. Ir para o hospital só em último caso, eu consigo me virar.

R: Tá... – Levantou e passou a andar pela sala, tentando pensar em uma solução. Enxergou um frasco de álcool gel e chegou mais perto – Posso?

B: Claro!

Bia assistiu atentamente Rafaella higienizar as mãos, demoradamente.

R: Acho que estamos em ambiente controlado, né? Esse negócio tá me sufocando... – Levou as mãos agora limpas à máscara e retirou-a – Quer também?

Rafa estendeu o frasco para Bianca, mas ela demorou a processar. Era a primeira vez em muito tempo, desde que passaram a se esbarrar na rua, que Bia via o rosto completo de Rafa. Ela já tinha reparado nos olhos bem pintados, mas agora ela conseguiu enxergar perfeitamente o quanto Rafaella estava impecavelmente maquiada.

R: Bia? – Ainda estava com o frasco em mãos.

B: Oi... – Balançou a cabeça – Claro, me dá, por favor!

Rafaella entregou o álcool em gel para Bianca que, ainda levemente descompassada, aplicou nas mãos e nitidamente segurou um quase grito de dor.

R: Que foi? – Percebeu a expressão contida da morena.

B: Esqueci dos ralados. – Fez cara de choro. De novo.

R: Ai, é verdade... – Chegou mais perto de novo, abanando e tentando ajudar a eliminar a dor insuportável que imaginou Bianca ter sentido com o álcool em contato com seus machucados. Depois de uns segundos assim, não aguentou a expressão quase cômica que enxergava em Bia e sorriu fraco – Pensa pelo lado positivo, os ralados também já estão higienizados.

B: Sei... Acho que seu eu tivesse ralado a raba, sem roupa e sem nada, no asfalto não tinha ardido tanto assim.

A cara emburrada de Bianca divertiu Rafaella, mas ela seguiu tentando negociar.

R: E se a gente ligasse para um médico que eu conheço? – Observou Bia retirando a própria máscara.

B: Ah, incomodar mais gente? Sei não.

R: Pelo amor de Deus, Bia. Alguma coisa a gente tem que fazer. – Passou a mão nos cabelos frustrada e, dessa vez, retirou o sobretudo. – Tá muito calor aqui!

B: É... – Ficou completamente sem fala quando percebeu Rafa em um vestido verde curto, com um decote generoso e uma composição de bijouterias linda no pescoço, que deixava seu colo ainda mais bonito – Pendura o casaco lá – apontou – Nos ganchinhos perto da porta.

R: Obrigada. – sorriu discretamente e caminhou até o local indicado, voltou assustando Bianca com a efusividade do tom de voz – JÁ SEI!

B: Quê isso, criatura? – Levou a mão ao peito, ainda atordoada com todos os estímulos inesperados na sala.

R: Claro, como é que eu não pensei nisso antes? – Abriu um sorriso enorme e lindo, desconcertando de vez Bianca, que fechou os olhos e massageou as têmporas, lutando bravamente para se concentrar – E se a gente falasse com a Thelminha? Ela mora na cidade e de repente consegue até dar um pulo aqui! Não é a especialidade dela, mas ela vai saber o que fazer mais do que a gente, né?

B: Não tá podendo circular. – Falou o óbvio, mas pensativa com a ideia de Rafa.

R: Eu sei, né? – Revirou os olhos – Mas a Thelminha é médica, ela tem passe livre pra isso.

B: É verdade, mas se a Thelma tem, a Marcela também tem, né? Adoro a Thelminha, mas eu prefiro falar com a Má.

[CONTINUA]

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