Cinco Dias (RABIA)

By bark2020

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Quando o isolamento não deixa outra alternativa a não ser dar vida ao que se tentou evitar e mascarar, mas qu... More

Tombo
Oferta
Início
Desconforto
Realização
Porre
Dia 5, Pt. 1
Dia 5, Pt. 2
Brisa
Perspectivas/Bixinho
Rotina/V, Pt. 1
V, Pt. 2
Dezembro
Sente, Pt. 1
Sente, Pt. 2
Madrugada
Madrugada, Pt. 2
[MIMO]
Recomeço
Todo Carinho
Contraponto
Esconderijo
Peônia
Inquietação
Desorientação
Elucidação
[MIMO 2]
Descontrole
Calmô
Verde
Difícil
Oposição
Aliança
Sábado
Pressão
Distância
Colisão
Back to Bad
[MIMO 3]
Refazer
Natural
[MIMO 4]
Chuva
Hipotético
Roma
Junho
Chega
Ventura
[AGRADECIMENTO]
[BÔNUS]
[MIMO BÔNUS]
[BÔNUS 2]
[BÔNUS 3]
[AVISO]
[BÔNUS 4: BAHIA]
[BÔNUS 4: NUVEM]
[BÔNUS 4: ROSA]
[BÔNUS 4: CINCO DIAS DE SOL]
[BÔNUS 4: GELO]
[PARÊNTESIS]

Lockdown

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By bark2020




Oi, pra quem for ler isso aqui.

Comecei a escrever essa história e me deu vontade de compartilhar.

Postei meio no improviso, sem planejar capa ou qualquer coisa, então me perdoem por isso.

A história que eu pensei vai ser quase que inteiramente focada nelas, ao menos no início.

Espero que tenha quem leia e goste do estilo. Se aparecer quem goste, continuo.


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Ainda sonolenta, Rafaella utilizou o espelho do elevador para ajeitar com delicadeza as mechas loiras e bem mais curtas com as quais ainda não tinha voltado a se acostumar.

Definitivamente gostava do que o espelho refletia, mas a "aura" do cabelo anterior era tão marcante que ela ia custar a se reconhecer ainda por uns dias, e tinha certeza disso.

Depois de um curto suspiro seguido de um leve arquear de sobrancelha desencadeados por essa constatação, foi a vez da máscara receber um cuidado especial antes de atingir o andar térreo, e finalmente a porta do elevador se abrir.

Atravessando o saguão do prédio com a confiança que só a rotina confortável pode proporcionar, a loira alcançou o portão e trocou as primeiras palavras cordiais do dia:

– Bom dia, Zé Carlos, a folga foi boa? – A fala foi completada por uma piscadinha, já que o sorriso agora se abrigava atrás da máscara.

Z: Foi, sim, Dona Rafaella! Graças a Deus! – Devolveu a cordialidade com o aceno de cabeça – Trabalho tão cedo assim?

R: Graças a Deus, não! – levantou as mãos espalmadas em direção ao céu, dramaticamente – Tô indo só comprar um pãozinho, mesmo!

Z: Ah, faz muito bem! Mas, ó... Não esqueça nem por um segundo dos cuidados, hein! Esse bicho aí fora não tá poupando ninguém! – O tom preocupado aqueceu o coração de Rafaella.

R: E eu não sei, Zé? Que Deus continue nos cobrindo de bênçãos, porque não tá fácil! – Replicou a preocupação em sua voz – Mas deixa eu ir lá, a gente vai se falando.

O homem acenou afirmativamente, encorajando-a a seguir seu caminho.

E foi o que Rafa fez, com o espírito leve, apesar das circunstâncias, e cheia de energia para começar o dia.

Aproveitou bem a perfeita combinação do friozinho que fazia naquela manhã do final de maio, com os raios de sol que iluminavam a paisagem quase sempre cinza de São Paulo.

Como o tempo de exposição na rua tinha que ser cada vez mais reduzido, Rafaella foi eficiente e desempenhou tudo que precisava rapidamente, retornando para seu prédio tão logo quanto lhe foi possível.

Distraída com as DM's de seu instagram, quando já estava a poucos passos de distância do portão a loira teve sua atenção desviada para o tom de voz ríspido que escutou saindo do táxi estacionado do outro lado da rua.

– Eu sabia que eu não tinha nada que pegar corrida com alguém nesse estado, meu Pai amado! – o motorista não economizava no volume da voz – Que garantia eu tenho que a patricinha aí vai se dignar a sequer lembrar que eu tô aqui embaixo esperando, hein?

– Moço, eu estou te dando a minha palavra, confia!

A voz enrolada embolou os sentidos de Rafaella, e ela abaixou os óculos de sol até a ponta do nariz, tentando receber ajuda mais precisa da visão para ter certeza de que seus ouvidos não estavam lhe pregando uma peça, e o diálogo prosseguia...

– Eu não vou confiar porra nenhuma! A parada vai ser a seguinte... – a loira conseguiu perceber a silhueta do homem se virando impetuosamente para o banco de trás – Deixa comigo esses óculos de sol aí da madame, e tá tudo no esquema. Você desaba na sua cama pra curar esse porre e eu sigo o meu caminho!

– Mas de jeito nenhum! – a voz feminina também se elevou – Esses óculos valem infinitamente mais do que essa corrida! – um suspiro precedeu a última tentativa de acordo amigável – Aqui! Vem comigo até a guarita e, se eu demorar, tu pede para o porteiro interfonar pra mim.

Definitivamente os sentidos de Rafaella estavam trabalhando bem, porque a confirmação veio fácil: aquele sotaque era inconfundível!

Embora não fosse necessária a contraprova, nos segundos seguintes a porta do táxi se abriu, e dele desceu a silhueta ainda mais inconfundível, que se dirigiu apressada para o lado do motorista, que também desceu já esbravejando.

– Ah, tenha santa paciência, eu tenho mais o que fazer! Tenho meu dinheiro pra ganhar e não vou ficar esperando! E tô ligado que igual esse óculos aí você deve ter uns trezentos lá em cima, olha a rua que você mora! – Riu sarcasticamente – ANDA! Passa logo pra cá! – Levou a mão ao rosto dela.

Tentando se desvencilhar do excesso do motorista, a morena nem percebeu os passos apressados que se aproximaram.

R: Dá licença, desculpa interromper... – o teatro que a loira teve que improvisar não deu conta de segurar a urgência no tom de voz, e ela pegou fôlego antes de continuar – Eu achei mesmo que era você, Bia! Tá tudo bem por aqui? – A cabeça girou da direção de Bianca para o homem, constrangendo-o ainda mais a prosseguir.

B: Ra-Rafaella? – Cerrou os olhos, forçando a visão que estava um tanto quanto ofuscada pelo entorpecimento alcoólico que ainda não tinha cessado por completo.

R: Eu mesma! – levantou os óculos escuros – Esses óculos e a máscara não ajudam muito, né? – Piscou os dois olhos, fazendo o esmeralda de sua íris dar o recado final para Bianca – Mas então... Tudo bem? – Insistiu.

B: Sim... – Apertou os olhos e chacoalhou a cabeça – Quer dizer, só um pequeno contratempo aqui, mas já resolvendo por...

– Já resolvendo o caramba, eu ainda tô sem meu dinheiro e tô cansando dessa cena aqui! – O homem interrompeu.

R: O que aconteceu, Bia? Você esqueceu a carteira? – Rafa tocou gentilmente o braço branco, tentando retomar a atenção de Bia, que permanecia aérea, tentando processar todas as informações do ambiente.

B: É... – Deslizou o olhar para os dedos longos que encostaram em sua pele – E-Eu ia chamar o táxi e pagar pelo aplicativo, mas minha bateria acabou e eu acabei pegando na rua mesmo e.... – Levou a mão à testa, erguendo o braço e desfazendo o contato com Rafaella – É... Só no meio do caminho que a jumenta aqui percebeu que também só poderia pagar por aproximação do celular, pelo cartão virtual. Eu não carrego mais carteira... Desculpa, moço! – Baixou o olhar, mortificada – Mas eu subo rapidinho e...

M: JÁ FALEI QUE NÃO VOU ESPERAR! – O motorista perdeu a paciência.

R: Calma, meu Senhor! – interveio definitivamente e encaminhou para a solução, já abrindo sua bolsa – Quanto foi a corrida?

B: Rafaella, não precis...

M: Cinquenta e cinco reais! – Interrompeu, subitamente tranquilo.

B: QUE MENTIRA! Eu vim do Itaim, nunca na vida que ia dar isso tudo! – deu um passo à frente tentando enxergar o taxímetro e percebendo-o desligado – Mas tu é muito cara de pau mesmo! – Quando foi dar o segundo passo, Rafa levou a mão ao ombro dela, impedindo-a de continuar.

R: Calma, Bia! – Apertou suavemente ali e levou de volta a mão à carteira – Tá tudo bem, vamos resolver isso de uma vez, não?

Bianca inspirou pesadamente, passando as mãos pelos cabelos e consciente de que nem o álcool estava sendo capaz de atenuar a imensidão daquela humilhação, que só piorava.

B: Tudo bem! – Soltou o ar e despencou o braço, vencida.

Rafaella acenou positivamente, e retirou da carteira uma nota de cinquenta e outra de dez.

R: Pode ficar com seu troco. – Estendeu o dinheiro, sem economizar no olhar recriminatório por toda a postura do motorista naquele momento.

M: Já é! – Pegou as notas e entrou no carro – Passar bem as madames!

O carro arrancou e o constrangimento ficou.

B: Obrigada. – O fio de voz foi acompanhado do olhar que mirou os próprios pés – É... Como eu faço pra te pagar? Não tenho como anotar agora porque tô sem celular e caneta, mas se você puder me passar uma conta ou endereço seu, sei lá... Pela DM, no insta!

R: Não precisa se preocupar com isso, mas... Eu moro aqui na frente, Bia! – Rafaella riu incrédula, apontando para o prédio da frente – Você não se lembra que eu te contei lá na casa?

B: Eu... – o esforço descomunal para continuar acompanhando aquela conversa era cada vez mais perceptível para a loira – É verdade! Eu acho que esqueci...

R: Tudo bem, tô vendo que você tá virada, deve estar cansada! – Tentou soar compreensiva.

B: Um pouco... – sorriu timidamente – De todo modo, obrigada de novo! Eu deixo na sua portaria assim que eu me recuperar!

R: Já disse que não precisa e...

B: Eu faço questão, Rafaella! – O olhar duro intimidou e surpreendeu a loira, que não teve outra alternativa a não ser recuar.

R: Tudo bem... – o tom veio baixo e vacilante – Vai descansar e... Se cuida! Tá perigoso continuar saindo assim, Bia! Nem máscara você está usando...

Bianca gargalhou.

B: Santa Rafaella... – o tom debochado encolheu ainda mais a loira – Mas descansa também, Missionária! – a morena levou a mão ao portão de seu prédio – Eu tô bem grandinha, e aquela câmera ali... – apontou para a câmera que registrava os carros que entravam na garagem, antes de finalizar – Não tá em você, não. Não tem ninguém vendo! – Deu uma piscadinha e entrou de vez, deixando Rafaella sem reação para trás.

Sem reação, mas repleta de certeza de que a mágoa ali ainda era grande demais.


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De volta ao apartamento, Rafaella jogou o saco de pão em cima do balcão, descontando no gesto toda a frustração.

Ligou a cafeteira. Foi até a geladeira e pegou manteiga, frios, iogurte. Acomodou tudo no balcão e colocou a cápsula na cafeteira. Enquanto aguardava a xícara ser preenchida com o café, socou com força moderada o armário, sem compreender por completo a súbita alteração de sua energia.

Sentou para tomar seu café dignamente, ligou a televisão e se pôs a refletir enquanto mantinha os olhos no noticiário matinal.

Martelava incessantemente em sua mente o quanto Bianca não mudava mesmo. Nenhuma interação com ela jamais seria fácil, nem quando Rafaella se dispunha a nada mais do que ajudá-la.

E a irresponsabilidade?

Meu Deus do céu, quem é que continuava saindo naquele contexto e sem qualquer proteção?

Uma coisa era certa: Bianca fazia tudo, menos aprender a evitar os erros. E sempre seria assim.

Tentando se livrar do pensamento que naquele momento julgou despropositado, Rafa tentou focar na coletiva de imprensa do Prefeito de São Paulo.

Bom, e diante da falta de conscientização espontânea da população e da exorbitância estatística que enfrentamos agora, infelizmente a única medida possível é o completo fechamento da cidade. Toda e qualquer circulação de indivíduos que não atuem em serviços considerados essenciais, e que não seja para hospitais, farmácias e supermercados está proibida a partir de amanhã, ficando autorizada abordagem policial e aplicação das multas previstas para a infração. Também está autorizada uma atividade física diária ao ar livre, sem aglomeração. Os estados limítrofes com nosso estado já fecharam as estradas, e o aeroporto também será fechado. A colaboração e a compreensão de todos é essencial neste momento. Não temos mais outro recurso!

A loira duvidou por um segundo se tinha compreendido corretamente e, enquanto tentava processar as palavras, a mensagem de seu irmão apareceu na tela de seu celular.

Renato: Mana, você viu que provavelmente você não consegue mais voltar pra Goiânia para o evento que temos amanhã?

Rafa: Eu estava vendo a coletiva agora, mas não é possível isso... É a partir de amanhã, deve ter algum vôo hoje, não?

Renato: Não tem. Já não tinha antes, por isso só tinha reservado para você retornar amanhã. Fodeu!

Rafa: Quanto tempo vai durar isso, meu Deus? Eu tenho que voltar!

Renato: Difícil saber agora, mana, mas a gente vai dar um jeito. E, se demorar, pensa que você tem sua casinha aí, não tá desamparada... É só ter um pouco de paciência que em alguns dias isso deve melhorar! Agora ou vai, ou explode esse país de vez, né?

Rafa: Não joga essas coisas pro universo, Rê! Tem que dar certo, Ele tá cuidando e olhando por nós! Vai dar certo, eu tenho certeza!

Renato: Aleluia, arrepiei!

Rafa: Idiota!

Renato: Que isso, maninha? Deus não curte essas agressões, não, hein? Te cuida e vamos nos falando!

Rafaella apenas revirou os olhos e nem respondeu, afastando o celular e apoiando os cotovelos no balcão. Levou as mãos aos cabelos e apertou ali, tentando transferir um pouco da frustração que só se avolumava em seu corpo.

Sentia-se imensamente imatura por estar tão incomodada por tão pouco, em um contexto tão sério. Afinal de contas, como seu irmão disse, ela estava em segurança e confortável, não havia o que reclamar diante de tanto sofrimento lá fora.

Era só ter paciência.


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No final da tarde daquele mesmo dia, o amigo de Bianca que morava com ela, Miguel, entrou sem cerimônias no quarto da empresária, batendo palmas.

M: Chega de dormir! – caminhou até a cortina, e abriu-a – Tem pouco sol lá fora, mas é o suficiente pra você não passar essa vergonha de pular o dia e emendar as noites. Acorda, Bi! – sentou na cama e chacoalhou o ombro dela.

B: Ahhh, "carái"... – jogou o travesseiro em direção ao amigo – Que merda que eu tenho pra fazer hoje, me diz? Deixa eu dormir!

M: Ficar com essa cabecinha acordada e livre para criar mais coisas é uma delas... – pressionou o indicador na testa de Bianca – Agora... Saber o que se passa no mundo é a principal! A gente precisa tomar umas providências, Bia...

A oscilação para o tom preocupado finalmente colocou um pouco de foco na empresária. Ela levantou o tronco e posicionou-se sentada.

B: Aconteceu alguma coisa? A Payot entrou em contato? – os olhos aflitos sensibilizaram o amigo.

M: Calma, meu amor, mas acho que é até mais sério do que isso – torceu o nariz, formando uma expressão divertida e tentando adicionar leveza à cena – O Prefeito decretou lockdown em São Paulo, e a partir de amanhã nós estamos em regime de confinamento, cada vez mais próximos de protagonizarmos o BBB21.

Bianca dobrou as pernas, apoiou os cotovelos nos joelhos e escondeu o rosto nas palmas das mãos, enquanto o homem prosseguia.

M: Foi sua despedida dos rolês irresponsáveis, meu amor, a partir de amanhã só vai dar pra ir em farmácia, supermercado ou se exercitar ao ar livre. Mais do que isso e a polícia pode te enquadrar!

B: Isso só pode ser um pesadelo! – esfregou as mãos no rosto, e percebeu seus cílios despencando, retirou-os de vez.

M: Pois é, mas tem mais... – Miguel esticou o corpo, alcançando no móvel ao lado da cama o pacote de lenços demaquilantes que Bia mantinha ali. Tomou fôlego, aproximou-se dela para ajudá-la a tirar a maquiagem e seguiu – Eu não vou conseguir mais deixar meus pais sozinhos, Bi. Agora minha irmã não vai poder ficar circulando para ajudá-los no que for preciso, e eu tô pensando em ir pra lá ficar com eles.

B: Ah, não... – o tom triste foi inevitável, mas Bianca sabia que não podia ser egoísta a este ponto – É claro que eu entendo, amigo, mas.... Foi tão difícil pra mim aquelas primeiras semanas e...

M: Eu sei, meu amor, mas eu quero que você saiba que eu não faria isso nunca com você se eu tivesse opção.

O tom aflito do amigo fez Bianca respirar fundo e alterar de vez a frequência.

B: É claro que eu sei, Guel! Vai ficar tudo bem, eu só preciso me acostumar com a ideia... – puxou ele para um abraço e deu um pulo na cama em seguida, desnorteando Miguel – A gente não tem nada em casa! Pelo amor de Deus, você precisa me ajudar e ir no mercado antes!

O homem sorriu conformado.

M: Foi exatamente por isso que eu te acordei, sua quenga! – Puxou ela para fora da cama – Anda, vamos logo deixar sua despensa minimamente abastecida. Vai logo tomar esse banho e tirar essa "nháca" de álcool!

Morta de indisposição, mas ciente de que não tinha margem para discussão, Bianca passou de calcinha e sutiã na frente do amigo e foi fazer o que tinha que fazer.


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Como já tinha anoitecido, Bianca e Miguel optaram por irem a pé a um mercado menor no bairro mesmo, contariam com a ajuda de um entregador para carregar os volumes mais pesados, já que a compra não poderia ser tão pequena assim.

Depois de reunirem tudo e Bianca pagar a conta, voltaram caminhando e carregando algumas sacolas.

M: Compramos o básico para durar algumas semanas, de fome você não morre. – Bia revirou os olhos, ajeitando o cachecol para lhe proteger melhor do frio que fazia naquela noite – E lembre-se que, de qualquer forma, as coisas perecíveis você vai precisar comprar com uma certa frequência, semanalmente.

B: Tá bom, mamãe! – O tom foi mais irritado do que irônico, deixando evidente o quanto Bianca se recusava a encarar a realidade que jogaram em seu colo naquele final de tarde, mas ela tentou encerrar serenamente – Vai dar tudo certo, não se preocupe!

M: Até o ano passado, eu não estaria preocupado, mas essas semanas morando com você, depois da burrada que você fez entrando naquele reality show... Não sei, não. – Inspirou profundamente – Eu queria muito que as coisas não estivessem tão atropeladas assim para eu continuar aqui com você.

B: Ei! – Parou bruscamente o caminho e fez o amigo encarar seus olhos – Eu consigo e eu vou me controlar pra manter a minha paz nesses próximos dias, pode acreditar! – sorriu tranquila, e puxou novamente o passo – Além do mais, não se esqueça que eu vou te importunar muuuuito no facetime.

M: Mas disso eu não tenho dúvidas, meu amor! – Carregou na entonação. Parou já empurrando o portão do prédio, quando percebeu Bianca estática no meio da calçada, olhando para o outro lado da rua – Que foi? Esqueceu alguma coisa?

B: Acabei de lembrar uma coisa. – Levou a mão à testa, tentando raciocinar – É... Vem cá, tu tem sessenta conto aí com você?

M: Oi? Sessenta reais? – Mirou a direção do olhar dela, tentando decifrar o raciocínio da chefe – O que você esqueceu de comprar? Eu vou lá e pego pra você. – Bateu o portão de novo.

B: Não esqueci de comprar nada, Miguel! – Revirou os olhos – Tem ou não tem? Só me responde isso.

M: Tenho. Tenho, sim. – Retirou a carteira do bolso e estendeu as notas pra ela – Mas vai me explicar o que está acontecendo?

B: Eu preciso pagar uma dívida, só isso. – Caminhou até o interfone do próprio prédio e aguardou que o porteiro lhe atendesse. Quando aconteceu, continuou – Reginaldo, tudo bem?

R: Tudo, sim, Dona Bianca! Não vai entrar?

B: Preciso resolver uma coisa antes, mas aqui... Aí na portaria tem algum envelope vazio que pode me ceder?

R: Tem, sim. – Destravou o portão – Pega aqui comigo.

A morena entrou rapidamente no prédio, deixando Miguel com as sacolas que carregava.

Percebendo certa demora da amiga, Miguel chegou na porta da guarita e percebeu Bianca escrevendo algo, e em seguida colocando o dinheiro no envelope.

B: Salvou a minha vida, Reginaldo! – estalou um beijo por trás da máscara, deixando o ambiente apressada.

M: Dá pra diminuir o passo? – Tinha dificuldade de carregar tudo e acompanhar a loucura de Bianca ao mesmo tempo.

B: Pode subir, se você quiser. – Do meio fio, aguardou o carro passar pela rua e saiu em disparada, atravessando-a.

M: Caralho, Bianca! Deixa de ser sem noção! – Irritou-se quando tropeçou, mal conseguindo equilibrar todas as compras. – Que raio de dívida é essa?

B: Eu cheguei essa manhã de táxi e, bem... – envergonhou-se ligeiramente – Digamos que eu precisei da boa vontade de alguém para pagar a minha corrida.

Miguel gargalhou alto.

M: Não acredito que você passou essa vergonha! – Curvou o corpo, em um gesto de completa descrença – Esse confinamento forçado vai salvar a sua vida, Bianca, sinceramente... Olha o nível que você chegou!

B: Quieto! – Não poupou a  rispidez e apertou o botão do interfone, sendo prontamente atendida.

– Boa noite! Pois não?

B: Boa noite! Por favor, eu preciso deixar uma encomenda com o Senhor pra entregar pra uma moradora, mas eu não sei o número do apartamento! – Prendeu a língua entre os dentes, como se o porteiro pudesse ver sua expressão travessa.

Neste momento, Miguel encostou a testa no portão e fechou os olhos, aparentando ainda mais envergonhado do que a causadora de toda a confusão.

– O nome e o sobrenome, a Senhora tem?

B: Tenho, sim. É Rafaella... – Até tentou, mas não conseguiu deixar de acompanhar a reação do amigo antes de completar – Rafaella Kalimann.

M: É o quê??? – Abriu e arregalou os olhos, erguendo a cabeça imediatamente.

B: Shiiii...

– Ah, sim! Perfeitamente, Senhora. Pode deixar aqui comigo, eu entrego pra ela.

O estalo do portão sendo liberado deu passagem para Bianca e ela rapidamente entrou. Porém, deu três passos e voltou apressada até Miguel.

B: Me dá isso aqui! – Retirou uma garrafa das sacolas que ele carregava.

M: MEU VINHO, BIANCA!

Sem direcionar nem o olhar para o amigo cabeleireiro, Bianca saiu em disparada, entregou tudo para o porteiro, e voltou com um sorriso cínico no rosto, sabendo que devia uma explicação.

B: Desculpa, amigo, mas eu preciso ser mais gentil com essa pessoa do que simplesmente devolver o dinheiro! – Fechou o portão – Aquilo lá não se contenta com 'desculpa' e 'obrigada', precisa lamber o chão que ela pisa também senão sai falando que é mal agradecido. Tô escolada já... – Atravessou a rua correndo.

M: Tá, mas... – Chacoalhou a cabeça, incrédulo com a naturalidade de Bianca – Como isso foi acontecer? Desde quando ela mora na frente da sua casa?

B: E eu sei? – Deu de ombros, já chegando no elevador do próprio prédio – Ela tinha contado dentro da casa do BBB que morávamos perto, mas eu bloqueei isso da minha mente junto com tudo que dizia respeito a ela.

M: E resolveu desenterrar justo assim? Pedindo dinheiro emprestado? – Gargalhou.

B: A humilhação, migo. Ela é um efeito colateral dos meus porres, e você tá cansado de saber disso! – Chegou no andar de seu apartamento e destrancou a porta – Abaixo do chão mijado, ainda tem o inferno, e de lá sai cada demônio pra cruzar o meu caminho, que contando ninguém acredita.

M: Isso é. Os motivos de todas as velas acesas de Dona Mônica! – Saiu com as sacolas de compras em direção à cozinha.

B: Lua, sua miniatura de quenga, a gente nem demorou tanto assim! Pra que esse miado desesperado? – Com a voz engraçada de sempre, Bianca abaixou-se para pegar sua gata e esmagá-la em seguida, fazendo o animalzinho se arrepender de ter miado. Prosseguiu no assunto com Miguel – Dona Mônica já desistiu de mim, eu tô por minha conta, tô ligada faz tempo!

M: Sua mãe não desiste de você é nunca! – colocou as sacolas no balcão – Mas continua, como é que funcionou isso?

B: Isso o quê, criatura? – soltou a gata, enfim – E não solta isso aí, não, que a gente precisa higienizar tudo antes do resto das compras chegar com o moço do mercado.

Miguel desenhou uma expressão mal criada no rosto, mas obedeceu. Começou a desempacotar tudo.

M: Para de desviar o assunto, e é óbvio que eu estou perguntando como é que aconteceu isso? Você teve essa cara de pau toda de pedir socorro para Rafa Kalimann?

B: Evidente que não. – Fuzilou ele com o olhar – A garota brotou do meu lado enquanto eu tava discutindo com o motorista marrento, eu nem vi como e nem de onde surgiu. Inclusive, eu demorei uns bons segundos para entender de quem se tratava.

M: Pra cima de mim, bicha? – Soltou uma risada sarcástica – Rafa Kalimann é tudo, menos uma figura 'esquecível'.

B: 'Esquecível' ela não é, mas praticamente irreconhecível de máscara e óculos escuros, com certeza. Até o cabelo ela mudou, tá loira! – abriu a torneira para lavar os produtos que chegaram do mercado.

M: Sério? Choquei! – não disfarçou a expressão de espanto – E a Jenifer conseguiu reconhecer a Missionária por si só? Fala a verdade, passou mais vergonha ainda...

B: Reconheci, sim... Acha? – olhou com desdém para o amigo – Como você mesmo disse, Rafaella é tudo, menos 'esquecível'. E eu tô bem certa de que eu preciso de mais umas dez existências para não reconhecer a voz e a presença dela.

M: Nossa, Bi... – soltou o pano de prato, apoiando a mão na pia para encarar a amiga de perto e saborear melhor a reação que sabia que viria – Essa frase cabe redondinha na boca de alguém do fandom blindados!

B: Tu me respeita... – Jogou água nele, fazendo o amigo se afastar gargalhando –  Eu botei ela pra correr e tudo, tá me tirando?

M: Ai, Santo... – Despencou o corpo na banqueta que servia ao balcão – Eu juro que estava engraçado até agora! Bianca não arranjou mais um cancelamento, não, né?

B: Claro que não! Só coloquei ela no lugar dela... – disse displicente, aumentando a ansiedade do rapaz – Acredita que ela veio pregar pra mim? Só faltou me excomungar porque eu tava na rua e sem máscara, vê se pode?

M: Bianca... – mordeu os dois indicadores dobrados, tentando conter o surto – VOCÊ ESTAVA SEM MÁSCARA NA RUA, BIANCA? JÁ NÃO BASTAVA FURAR O ISOLAMENTO?

Não conseguiu, evidentemente.

B: Ahhh, 'pufavô'... – Soltou tudo na pia e se afastou, assumindo a defensiva – Você acha que eu não sei dos meus erros? Fiz merda, cara! Tô ligada nisso... Agora, não banca a Missionária pra cima de mim, não, que eu te chuto daqui também!

M: Bia, sério... – Amenizou o tom buscando imprimir seriedade ao caos – Não me faz ficar ainda mais destruído por ter que te deixar aqui, não? Eu preciso que você seja mais responsável... – chegou mais perto e pegou as duas mãos dela – MESMO! Eu tô ligado nas nóias que você vem tentando administrar, mas agora, mais do que nunca nas nossas vidas, a hora é de tentar atingir o equilíbrio, porque vão ser dias ainda mais difíceis.

A frequência de Bianca mudou também, e seus olhos encheram d'água.

B: Eu sei, Guel... – O fio de voz cortou o coração do homem – Desconsidera a noite passada, por favor, eu fui fraca, mas eu vou ser melhor... Eu prometo!

Miguel suspirou, abaixou para pegar a gatinha no colo, e retornou ao olhar de Bia.

M: O que a gente faz com a mamãe, Lua? – Alternou para o olhar de tédio felino antes de dar sequência – Você ainda vai continuar por aqui podendo fazer isso, mas eu vou ter que dar é muito, mas muito abraço na sua mãe antes de sair daqui hoje, pra não morrer de saudade!

Jogando-se nos braços de Bianca e enchendo-a de beijos, como sempre fazia, Miguel conseguiu dissipar a nuvem de tristeza que invadiu a cozinha.

-//-

Do outro lado da rua, a loira de olhos esverdeados saiu do banho enrolada na toalha, procurando o melhor pijama de plush que tinha na gaveta para dar conta daquele frio.

Abotoando a camisa de manga longa, surpreendeu-se com o som do interfone. Estranhando bastante, caminhou até o aparelho.

– Dona Rafaella, deixaram uma encomenda pra Senhora aqui embaixo.

R: A essa hora, Zé Carlos? – Coçou a cabeça, ainda perdida.

Z: Pois é, deixaram tem uns minutos, mas eu resolvi interfonar só agora, na hora do meu intervalo, porque aí eu já pergunto se a Senhora quer que eu suba e te entregue?

R: Ai, você faria isso por mim, Zé? – agradeceu aos céus a gentileza do porteiro, porque não queria mesmo ter que escolher entre sua preguiça e imensa curiosidade àquela hora da noite.

Z: Claro, Dona Rafaella, não me custa nada.

R: Maravilha, Zé, te espero aqui então.

A blogueira colocou o interfone no gancho e, em pouco tempo eliminou a inquietação, pois se deu conta de que muito provavelmente era algum presente de fã. Ainda não tinha se acostumado com o fluxo de atenção pós-BBB.

Em paz com a constatação, deu de ombros e, antes que o porteiro aparecesse, foi terminar de se arrumar.

Quando a campainha soou, Rafaella apressou-se para não subtrair muito tempo do intervalo do funcionário que ainda trabalhava naquele horário.

R: Você não existe, Zé! – Pegou com ele o envelope e a garrafa de vinho – Corre lá para o seu descanso e muito obrigada!

Z: Às ordens, Dona Rafaella. – Acenou gentilmente com a cabeça e se retirou.

Olhando para o rótulo do vinho, a loira preparou-se para ler a cartinha de fã que viria no envelope...

... E o tombo veio!


Maneiro você ter me ajudado, Rafaella.

Não vou esquecer, e espero poder retribuir.

Muito obrigada mesmo!

B.


Sentindo suas bochechas queimarem por um súbito e ridículo rubor que não poderia ser enxergado por ninguém, Rafa sentou-se no sofá, encarando as duas notas de dinheiro em uma mão e a garrafa de vinho na outra.

Ficou na mesma posição por segundos que pareceram uma eternidade, tamanho o volume e intensidade dos pensamentos velozes que cruzavam sua mente.

Sem ter muito o que fazer, levantou-se e caminhou até a cozinha para colocar o vinho na adega.

O envelope ela guardou cuidadosamente na gaveta de um móvel da sala, indo em direção ao celular em seguida.

Entrou em seu instagram e acessou suas DM's.

Deslizou muitas e muitas conversas, mas conseguiu chegar na janela que queria: a conversa iniciada com Bianca, e jamais respondida pela empresária.

Estava tudo ali ainda, as três tentativas dela de abrir um diálogo desde que tinha saído da casa.

Todas solenemente ignoradas.

Talvez estivesse provando do próprio veneno, já que sua fama de não responder tinha sido divulgada em rede nacional em uma das DR's que teve com Mari dentro da casa; ou talvez Bianca nunca tenha chegado a ver as mensagens.

Será?

Aquela dúvida ela teve sempre, em cada uma das duas vezes em que repetiu o gesto iniciado pela primeira vez na mesma semana que deixou o confinamento, e estava tendo de novo agora, quando queria completar a quarta tentativa de contato. Só que dessa vez seria para agradecer o vinho.

R: O que você tá fazendo, Rafaella? – Pensou alto, balançando a cabeça vigorosamente e jogando o celular na mesa de centro – Hoje mesmo a menina só faltou te empurrar na frente do primeiro carro que encontrou, se controla!

Enquanto o corpo de Rafaella afundava no sofá, afundava com ela o peso da constatação que ela quis tanto evitar naquelas semanas, e que naquele dia tinha se tornado inevitável: Bia realmente estava magoada com ela.

E justo Bianca, a maior entusiasta do perdão e do "ser humano"...

Se nem o bonde do Hadson tinha merecido aquele tratamento de Bia dentro da casa, talvez a batalha ali estivesse há muito perdida, e o melhor seria ignorar mesmo e seguir a vida.

Esse era o plano.

Pessimamente executado pela memória que caiu exatamente na figura frágil de Bia que ela viu aquela manhã, mais uma vez vulnerável e entregue à própria sorte depois de uma noite de bebedeira.

Olha o exagero no julgamento, Rafaella. – Ela se policiou.

Exagero ou não? O fato é que o sentimento que ela teve naquela manhã se aproximou muito com o que ela lembrava de ter tido na festa Guerra e Paz, quando passou por Bianca e a viu despencada em um canto, sozinha e muito bêbada.

Mas a distância que existia entre elas naquela época a impediu de ajudar mais, e infelizmente ela era muito menor do que o abismo que parecia ter se fixado definitivamente entre elas agora, depois de tudo o que aconteceu naquela casa.

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