Domingo 6:27 a.m.
Moquifo em Jamaica, Queens
-MARIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINA - e caí da cama
Sim, esse foi o meu bom dia em plenas 6:30 de um domingo. A porta do meu quartinho tremia tanto que só faltava cair e os berros da Sra. Levronskey provavelmente acordaram todos em um raio de pelo menos 20 metros de distância. Me levantei sustentada apenas pela força do meu ódio e me arrastei até a porta abrindo de uma vez.
-É Marynne, e ninguém me chama assim...ai! - Ela tinha jogado metros e metros de fios vermelhos sobre meus braços. Quase não consegui segurar - mas o que que é isso?
-Material de escritório, Wurtzbach, você trabalha pra mim hoje, lembra? Ta me devendo um serviço! - o que?
-Eu não vou refazer a porcaria de um gato às seis da manhã de um domingo!
-Se eu fosse você faria, por que tem uma tempestade vindo aí e você não quer ficar sem aquecedor - a encarei incrédula
- ...
- ...
-Ta de brincadeira comigo...
-E eu la tenho cara de palhaça pra ficar com piadinha? - melhor não responder
-Tá! ...mas eu vou precisar de mais que... muitos metros de cabo e um...isso aqui é um estilete?
-Anota e eu penso no seu caso - bateu a porta e saiu
Larguei os fios embolados no chão e fui sentar na minha cama. Escutei meu estomago roncar, faziam umas boas horas desde que eu tinha comido pela ultima vez. Abri a gaveta da comida e não tinha nada. Eu não teria tempo pra ir ao mercado e nem dinheiro pra comer em algum restaurante. Provavelmente passaria o dia inteiro ocupada com o "serviço". Mas antes morrer de fome que de frio.
Me levantei depressa e tirei o pijama velho de moletom. Abri o armário, onde distribuí as poucas roupas que tinha, peguei legging e blusa de manga longa pretas. Calcei as botas quentinhas que tinha ganho no último natal do orfanato e prendi o cabelo com uma caneta sem tampa que tinha em cima da escrivaninha.
Apanhei os fios do chão, depois de colocar o estilete no bolso, e saí do quarto deixando a porta trancada e trazendo o casaco junto. Desci quatro lances de escada até a "recepção", onde a Sra. Levronskey estava sentada assistindo televisão atrás do balcão e o gato em cima deste. Larguei os cabos em cima do gato, que saiu correndo, e peguei um pedaço de papel com uma caneta que estavam largados por ali.
Alicate decapador, alicate de corte, fita isolante...
-Tem isso ai? - ela olhou o papel e apontou pra uma porta do outro lado do cômodo, ao lado do sofá rasgado, sem nem tirar os olhos da televisão
-Tenta a sorte ali
Peguei os fios e coloquei em cima do sofá. Abri a porta e tateei as paredes até encontrar o interruptor. Quando acendi a luz, tudo o que eu conseguia pensar era...
confusão, alvoroço, baderna, balbúrdia, desordem, pandemônio
Aquilo era um armário ou a caixa de Pandora tamanho família? Tinham pilhas e pilhas de tralha, lixo e bagunça. Eu levei alguns minutos até, pelo menos, ter coragem de entrar naquele antro imundo e quando entrei percebi que não tinha sido a melhor opção. O primeiro saco que eu puxei revelou um rato, que correu pelos meus pés seguido pelo meu grito de susto. Depois um morcego voou e esbarrou na minha testa. E por fim, depois de quase duas horas procurando, consegui encontrar algumas coisas não exatamente úteis, mas pra tudo dá-se um jeito.
Saí de lá suada, assanhada e até arranhada, inclusive pensando em tomar um anti-rábico, arrastando uma escada e uma sacola com as ferramentas que tinha encontrado.
-Ok! - soprei uma mecha que caia sobre meu rosto pra cima - onde é que tá o...negócio
-No teto, perto das calhas, vai ter que subir até o último andar pra sair no terraço.
-E quantos andares tem essa joça?
-Sete.
-...
Só apanhei a escada, a sacola e o monte de fios e saí. Subi os seis lances de escada até a "cobertura". Naquele andar só tinham duas portas, a que dava pro terraço e a outra que era, provavelmente, do apartamento da Levronskey. Continuei arrastando as coisas até a porta de metal. Abri sentindo o vento gelado soprar as mechas soltas do cabelo. Agarrei as sacolas, pendurei de volta os fios no pescoço e arrastei a escada até a caixa de força, perto das calhas.
A escada era baixa, mas por sorte a caixa de força também. Abri, larguei as coisas no chão e vesti o casaco antes de subir. Meus lábios tremiam um pouco. Quando abri a caixa de metal eu tive até medo de colocar minhas mão ali. Fios desordenados, embolados, partidos e desencapados. Parecia um ninho de...eu nem sei que coisa faria um negócio daquele. Se eu não morresse eletrocutada ali, era ao infinito e além.
Depois de desligar a energia do prédio inteiro e levar uns gritos da Madame Russa, eu passei cerca de oito horas trabalhando direto entre o lado de fora e o de dentro. Mais fora que dentro, aliás. O vento gelado queimava minhas mãos, minhas orelhas e meu rosto. Eu estava completamente vermelha e dormente. Troquei os fios e refiz as ligações de maneira mais eficiente. Quando finalizei já era cerca de quatro da tarde e a tempestade citada mais cedo já estava se formando. Bom, por que eu já nem sentia mais os meus dedos, que estavam endurecendo. O céu estava escuro e o vento cada vez mais forte.
Fechei a escada e catei o material juntando tudo na sacola. Apanhei a escada, ferramentas, fechei a caixa de comando e entrei, sentindo alívio pela temperatura do interior do prédio. Descer os sete lances de escada foi mais fácil que subir, considerando que eu arrastava a escada e me pendurava na parede. Ao chegar na "recepção" fui direto na porta do quartinho de pandora, largando a escada de qualquer jeito e arremessando a sacola numa barata ou rato (não importa) que vi por ali e desejei nunca mais ter que entrar naquele antro de novo. Voltei pro balcão onde a bola de pelos dormia com a dona e bati no sininho uma vez.
Nada!
Duas
Nada!
Três seguidas.
Nada! Nada! Nada!
-Levronskey!
Nada, de novo!
-VIGILÂNCIA SANITÁRIA!
A velha se levantou num solavanco tão forte que eu fiquei com medo. A miserável quase cai da cadeira e, apesar de querer rir da mulher puxando as saias, eu pensei: Ir pro reformatório por homicídio doloso? Ela não podia estar tendo um infarto.
-Que que foi, Marina? - Perguntou bufando, tão irritada que parecia uma chaleira vermelha fumaçando pelos ouvidos
-Seu serviço já tá pronto. Eu não te devo mais.
-Ótimo... agora some da minha frente - se virou de novo
Murmurando um com todo prazer, voltei a subir as escadas direto pro meu quarto. Destranquei a porta e mal tinha fechado quando me joguei na cama, de rosto pra baixo. Eu ia tomar um banho, mas estava tão cansada e faminta que acabei adormecendo sem nem mesmo tirar o casaco.
A noite virou e ao contrário do que eu esperava não choveu. Foi pior que isso, uma tempestade de granizo caiu, batendo na janela a noite inteira. A canseira do "pós serviço" me proporcionou um sono longo e profundo, interrompido apenas pela tempestade de gelo às três da manhã, mas logo voltei a dormir, quando a fome persistente voltou a incomodar, com o o travesseiro sobre a cabeça, cobrindo as orelhas e abafando o som das pedras de gelo batendo na janela.
O alarme tocou às sete da manhã. Quando abri os olhos, a luz que normalmente entrava pela janela não me incomodou. Estava escuro, muito nublado, e provavelmente choveria no decorrer do dia. Me levantei e fui tomar um banho quente.
Escovei os dentes e penteei o cabelo, que mais parecia um ninho depois de todo o vento do dia anterior no terraço. Vesti o par de jeans mais grosso que tinha, blusa de manga longa preta, dois pares de meias velhas, um por cima da outra, e as mesmas botas quentinhas do dia anterior. Eu definitivamente precisava comprar meias. Juntei os materiais e coloquei dentro da bolsa, junto com os papeis entregues pela secretária no dia da minha matrícula.
Não comi nada antes de sair, tinha pressa demais e dinheiro de menos. Caminhei acelerada até a estação, chegando a tempo de pegar o metrô, às oito da manhã. Linha A pra Liberty Avenue, minha nova rota diária, foi tomada. Desembarquei na parada mais próxima da escola e andei mais alguns quarteirões até chegar no portão, às nove. pontualmente.
Não observei por muito tempo antes de respirar fundo e entrar de cabeça erguida, indiferente aos olhares. Fui diretamente até o meu armário, não foi difícil encontrar, ficava perto do refeitório. Destranquei e abri o armário vazio, passando os materiais mais pesados para o interior deste. Só percebi que tinha derrubado alguma coisa quando alguém me tocou o ombro e disse:
-Ei, essa caneta é sua?