Meus pensamentos vagueiam entre o real e o irreal, sem saber se estou perambulando num sonho. Sinto-me balançar, um movimento cadenciado que me nina fazendo-me ficar ainda mais confusa de onde estou, tento abrir os olhos, contudo as pálpebras sobrecarregam e é como se todo os cílios tivessem sido amarrados uns aos outros, impedindo-me de enxergar.
O balançar cessa de maneira abrupta e eu quase consigo desatar os nós que cerram meus olhos. Escuto um murmurar distante e sinto-me envolver, um calor me abrange, como corpos unidos protegendo-se do frio, como se alguém me tivesse carregando em seus braços.
Mesmo sem conseguir focar no que acontece ao meu redor, um aroma único invade minhas narinas, a fragrância é uma mistura de couro aveludado, madeira, menta e mandarina.
O perfume acalma o desnorteio dos meus sentidos e me faz desistir de abrir os olhos. Apenas me entrego a esse sonho, e fico acalentada e protegida entre a calidez que me abraça e o efeito da essência que me serena.
***
A luz da manhã me atinge e eu acordo. Rolo na cama, aconchegada, sabendo que é sábado e posso dormir até mais tarde. Sorrio de olhos fechados e ajeito o edredom, encaixando-o na curva do meu pescoço, mantendo-me ainda mais quentinha.
Eu adoro a preguiça que os finais de semana proporcionam e...
ESPERA!
Abro os olhos, e num sobressalto saio da cama, arrastando comigo o edredom que se embola em minhas pernas e me faz cair de bunda no chão.
— Como eu cheguei aqui? — pergunto a mim, desfazendo o emaranhado em meus pés.
Corro pelos pequenos cômodos da casa e minha respiração se torna mais pesada à medida que todos os eventos do dia anterior me voltam à mente como uma enxurrada que devasta tudo o que encontra.
— Meu Deus! Ele sabe onde eu vivo? — digo em voz alta, questionando o evidente. Elevo os braços e seguro meus cabelos, sentindo um misto de agitação, estresse, fraqueza e inercia.
— Egan me dopou duas vezes no mesmo dia — murmuro, sem acreditar no que aconteceu.
Saio tropeçando pela casa e acerto o joelho na mesinha lateral ao lado da poltrona na sala.
— Droga! — reclamo, pulando numa perna só. Encontro minha bolsa sobre o travesseiro ao lado do meu com um bilhete sobre ela.
Estaco no lugar e levo uma mão a boca, a sensação de ameaça me atinge como um soco na cara, uma descarga de adrenalina circula me fazendo sentir taquicardia e minhas mãos suarem.
Enumero mentalmente os fatos conforme busco me tranquilizar: Egan me sequestrou, dopou, encarcerou, depois me dopou novamente, entrou na minha casa, colocou-me na cama, e deixou-me um bilhete.
Volto a caminhar, com passos lentos e o olhar focado no papel. Subo na cama e tomo a pequena carta em minhas mãos, abrindo-a para ler seu conteúdo. Antes mesmo de identificar as letras, respiro fundo, imaginando todo tipo de ameaça, das mais cruéis e sanguinárias, afinal, ele é um homem que trabalha para Nolasco.
Mas ao contrário do que espero, suas palavras fazem meu coração bater mais forte, num descompasso diferente de medo.
Leio e releio suas palavras inúmeras vezes, talvez centenas. Em vez de ameaças vorazes e assustadoras, encontro mais que isso, encontro um grito silencioso de um alguém que é refém de si mesmo.
Aperto os olhos e digo a mim que essa história terminou, eu queria saber se aquele homem era Egan, e sim, é ele. Ponto Final.
Posso dormir em paz a partir de agora, não há mais por que me martirizar, ele sobreviveu e se tornou um adulto capaz de escolher seu caminho, se ele diz que sua vida é sem cor, vou acreditar que foi por escolha. Eu não tenho por que me incomodar com isso.
— É isso aí! — falo determinada e saio da cama, dobro o bilhete e o guardo na primeira gaveta da minha cômoda numa caixinha de madeira onde está o broche que minha avó me deixou, uma foto da minha turma na escola de quando ainda era criança e um retrato 3x4 do meu pai. Penso que aqui é o melhor lugar para guardar esse bilhete, nessa caixinha onde meu passado reside em paz.
***
Tomando um café quente e forte, começo a verificar meu celular e me assusto com a quantidade de mensagens que Pablo me enviou e me assusto ainda mais com as respostas que eu dei, das quais, na verdade, não fui eu.
Paro de mastigar a torrada que acabo de colocar na boca e meu queixo quase cai no chão lendo as mensagens.
— Meu Deus! Egan o respondeu por mim.
Começo a me sentir mesmo assustada, porque eu poderia estar morta numa vala nesse momento e Pablo acharia que eu me divertia durante a noite com uma recém amiga da escola.
Ouço uma batida forte contra a porta e o susto é tão grande que chego a engasgar com a torrada que ainda estava parada na boca. Tusso e bato a mão em punho contra meu peito para desengasgar e caminho até a porta encontrando Pablo.
— Por que não me chamou? Agora que fez novas amigas não vai mais sair comigo? — Ele diz e atravessa minha casa seguindo para a cozinha, se serve de uma xícara de café e senta numa banqueta.
Sigo-o e me sento também, ainda em choque com tudo o que está acontecendo.
— Mesmo sem beber você está com uma cara péssima, foram num lugar onde não havia tequila?
— Tequila? — pergunto, cética.
— Só pode ser a falta dela para ter falado comigo daquele jeito.
— Que jeito? — indago, desbloqueando meu celular para rever as mensagens que supostamente enviei.
Leio a última e então entendo a surpresa de Pablo, a mensagem diz: O irmão da minha amiga está me levando para a casa, estou cansada e com sono, vou direto para a cama, obrigada por se preocupar, mas, por favor, podemos nos falar amanhã? Boa noite!
Pablo inclina a cabeça e me vê lendo a última mensagem enviada a ele.
— O quão chato era o lugar onde estava para ser tão formal numa mensagem? "por favor" "boa noite" por um minuto pensei que estava conversando com outra pessoa.
Levo uma mão a testa e fecho os olhos, isso é loucura. E agora fico sem saber se conto a verdade para Pablo e o ouço para o resto da vida pegando no meu pé ou se finjo que de fato era eu enviando as mensagens.
Decido contar-lhe a verdade, entretanto, escolho protelar um pouco mais para fazê-lo... talvez na segunda, assim não o terei durante todo o final de semana me passando sermões intermináveis.
— Não tão chato quanto ter você enviando mensagens a cada cinco minutos.
— Estava entediado. — Ele diz, pegando agora uma tangerina da minha fruteira. — O que vamos fazer hoje?
— Preciso ir à livraria e comprar uns vinte exemplares de O Meu Pé de Laranja Lima — falo, levantando-me.
— Para trabalhar em sala? — pergunta.
O bom de nossa amizade é que ela ultrapassa os limites pessoais e se atrela aos profissionais, podemos num minuto falar sobre nossa noite e no outro falar sobre trabalho, na mesma fluidez.
— Sim, eles me viram com o livro e nem sei como ainda, mas consegui gerar interesse em alguns deles e vamos fazer um debate depois de eles lerem o livro.
— Parece que seu livrinho é mesmo um amuleto da sorte — fala, jogando a casca da fruta que acaba de descascar no lixo.
— Você sabe que ele é, seus poderes mágicos não tem limites.
— Anda logo, Blanca... Vá se vestir e vamos, vou aproveitar e comprar uns títulos que Luz me indicou.
— Hum! Luz? É a segunda vez que fala nela. Ao que parece só tem Luz de professora na sua escola — digo, com uma voz afetada.
Pablo enrubesce e suas bochechas ficam da mesma cor de seus cabelos.
— Vá logo! — fala, indicando com a mão que eu saia.
Faço como ele diz e sigo rindo para o meu quarto, sei como ele odeia essas insinuações, sempre diz que pareço ainda estar na época ginasial quando faço isso, mas ver suas bochechas vermelhas me encoraja a continuar não importando a época.
Visto-me sem muitas pretensões, escolho uma calça jeans básica, uma sapatilha com a ponteira bicolor e uma camiseta com uma estampa metalizada, pego minha bolsa da semana, a mesma que Egan deixou ao meu lado na cama e a abro para tirar minha carteira.
Aos finais de semana não ando com a mesma bolsa grande que preciso no dia a dia, uso somente uma bolsinha tiracolo com minha carteira e celular.
E assim que abro a bolsa da semana, vejo que falto algo.
— Meu livro. Cadê meu livro? — repito várias vezes, conforme despejo todo o conteúdo dela sobre a cama.
— Cadê? — grito e Pablo aparece no quarto.
— O que foi?
— Meu livro! — berro.
— Está sempre com você. — Ele fala, desviando o olhar para a bagunça sobre a cama.
— Não está! — respondo, apontando para onde seus olhos seguem.
— Calma, Blanca. Será que não ficou na escola? Ou com algum aluno seu?
Esfrego meu rosto, sentindo-me estranhamente tonta.
— Ele roubou meu livro.
— Seu aluno? — Pablo pergunta, tocando meus ombros. — Calma, senta.
Sento-me na cama e meu corpo parece flutuar.
Como ele pôde pegar meu livro? Por que Egan roubou meu livro?
Faço-me as perguntas, enquanto percebo meus olhos nublarem. Aquele livro é como meu amuleto, ele é especial demais para tirarem de mim.
— Não, não meu aluno. Egan roubou de mim, foi ele — informo, com os olhos chispando de raiva.
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Será mesmo que ele pegou o livro dela? Ah, não! Prevejo mais confusão e vocês?
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Sem revisão