Benício estava de volta em seu quarto na casa de Vitória. Sem forças ou direito de objetar, ele aceitou que não era mais capaz de interceder por si próprio e tomar qualquer decisão. Aquele quarto era deprimente e ter cinco pessoas em volta dele de uma vez - o médico, que examinava-o, Dona Ivete e Sofia, que terminavam de ajeitar o local, e Vitória e Marieta, que não passavam um segundo se quer sem discutir - era extenuante. As dores que sentia pareciam a parte mais simples do que sentia naquele momento. Desejou mais que qualquer coisa voltar a dormir e acordar longe dali.
- Ele não pode ficar aqui! - Disse Marieta, baixo, enquanto discutia com Vitória tentando não atrapalhar o médico.
- E onde mais ele ficaria, mulher? - Disse Vitória, baixo também, irritadiça. - Na tua casa? Enquanto tens duas crianças para olhar?
- Melhor que aqui, contigo. - Resmungou Marieta entre os dentes.
- Ele ficará bem.
- Dona Vitória? - Chamou o médico.
- Sim?
- A pressão dele está boa, tudo indica que não corre mais risco. Dei a ele um remédio para dormir, logo fará efeito.
- Graças à Deus. - Disse Marieta, aliviada.
- Aqui está a receita. - Disse o médico ao entregar um papel para Vítoria. - Morfina e mais alguns remédios para baixar a febre, caso ele tenha.
- A dose é muito alta. - Comentou Vitória ao ler a receita.
- Perdão?
- A morfina. É muito.
- Senhora, devo informar que ele está a sentir uma enorme quantidade de dor.
- Ele é um rapaz grandinho. Cortarei pela metade.
- Vitória!? - Reclamou Marieta.
- Morfinismo é pior do que sentir um pouco de dor. - Disse Vitória. - Acredite, eu gostaria de ter sentido.
- Bem, creio que meu trabalho aqui acabou por ora. - Concluiu o médico. - Daqui dois dias voltarei para examiná-lo. Dona Vitória, podemos acertar...?
- Claro, Doutor, venha até o meu escritório. Marieta?
- Sim?
- Fique de olho no teu irmão. Garanta que ele durma.
Vitória estava estressada com Marieta e sua admirável capacidade de ser inconveniente, mas queria fazê-la sentir-se útil ante aquela situação tão complicada - em parte para acalmá-la, em parte para que ela não atrapalhasse. O médico, que não via a hora de sair dali pois temia ser colocado no meio de algum conflito das duas, adentrou o escritório de Vitória e deslumbrou-se imediatamente com o local.
- Aqui está, Doutor Emílio. - Disse Vitória ao entregar o dinheiro para o médico.
- Obrigado.
- Obrigada ao senhor. - sorriu.
- Sim, claro. Dona Vitória, eu também gostaria de recomendar-lhe que arrumes uma enfermeira. Limpar feridas, controlar medicação e esse tipo de coisa é um trabalho muito pouco agradável e que toma muito tempo.
- Eu entendo bem de limpar feridas e controlar remédios, Doutor. - Respondeu Vitória.
- Claro. - sorriu - Como quiseres. Aquilo é uma caliandra rosa? - Perguntou Doutor Emílio, ao por os olhos em um vaso de planta repleto de pom-poms cor-de-rosa no fim da sala.
- É sim. - Respondeu Vitória, sorrindo. - Bonita, não? Acho mais bonitas que as vermelhas.
- O Senhor Benício é biólogo?
- Não, ele é engenheiro. - Respondeu Vitória, casualmente, enquanto procurava em suas gavetas um papel para fazer de recibo.
- Ele parece se interessar muito por botânica, então. - riu - E fósseis.
- Doutor, este escritório é meu. - Informou Vitória, seca, erguendo a sobrancelha ao entregar o papel e a caneta para o médico.
- A senhora se interessa por ciência? - Perguntou Doutor Emílio enquanto assinava o recibo.
- Talvez um pouco. - Respondeu Vitória, sarcástica, ponderando se o médico ignorava o diploma dela na parede de propósito ou apenas era desatento. - Mais alguma coisa, Doutor?
- Tudo certo. Qualquer emergência, basta chamar.
- Claro. Sofia? - Gritou Vitória, já impaciente com a presença do médico ali.
Como esperado, a noite foi longa. Benício foi acometido por febres intensas e dores muito fortes. Vitória novamente passou a madrugada em um cadeira ao pé de sua cama tentando controlar sua temperatura. O dia já estava amanhecendo quando ele começou a dar sinais de melhora. Vitória tinha o semblante cansado, mas estava bem desperta - e, surpreendentemente, de bom humor. Os dois não conversavam, Benício apenas queixava-se da dor e Vitória andava de um lado para o outro fazendo o possível para amenizar. Era agoniante para Benício vê-la tão quieta e prestativa; e era quase instintivo para ele querer irritá-la ao ponto de vê-la surtar e largá-lo ali para morrer ou, quem sabe, tentar sufocá-lo com o travesseiro. Mas ela parecia inabalável, uma cuidadora experiente e amável que mal abria a boca. Aquela era uma parte dela que ele desejou jamais ter conhecido.
- Estou lisonjeada. - Comentou Vitória, ironicamente, enquanto limpava Benício pela manhã ao perceber que ele se enrijecera.
- Desculpe. - Respondeu ele, sonolento, sem dar muita importância.
- Tudo bem. Já vi muitas vezes.
- Eu quero morrer.
- Não se preocupe, soldado. Estou quase acabando.
Benício riu e arrependeu-se logo em seguida; seu abdômen doeu imediatamente em resposta. Vitória ajudou-o a vestir a calça.
- Os pontos estão bem feitos. Eu teria feito melhor, mas... - Comentou Vitória ao limpar a ferida costurada. Ela aplicou um líquido amarelo que fez Benício dividir-se entre a ardência e a dor nos músculos e grunhir resposta. - Desculpe. O da mão agora.
A mão de Benício que foi usada para defender-se do primeiro golpe de Narciso com a garrafa quebrada tinha um total de oito pontos. Eram dois cortes feios, mas não profundos. Nenhum nervo foi atingido, mas Vitória temia que, caso a cicatrização não fosse boa, os movimentos da mão dele ficassem comprometidos. Um silêncio pesado formou-se entre eles. Benício já estava bem desperto e encarava o nada, reagindo apenas à dor dos remédios que Vitória aplicava em suas feridas.
- Queres conversar sobre isso? - Perguntou Vitória, quebrando o silêncio.
- Isso o quê?
- Sobre o porquê de ter envolvido-se em uma briga de bar.
- Homens brigam.
- Você não. - sussurrou - O que fazias no subúrbio?
- Usarei uma das tuas sentenças favoritas: o que faço ou deixo de fazer não é da tua conta.
- É, talvez eu mereça isso. - revirou os olhos - Fiquei preocupada contigo.
- Pare de fingir que se importa.
- Não estou fingindo, Benício. Deus, achas mesmo que eu, de qualquer forma, gostaria de vê-lo assim?
- Acho.
- O drama lhe cai bem. - Murmurou Vitória, sarcástica.
- Como pensas que a viuvez lhe cairia.
- Deus do céu. - riu - Olhe, eu sei que as coisas ficaram simplesmente péssimas entre nós desde... Bem, desde o Natal. Eu sinto muito, de verdade.
- Sentes? - Perguntou Benício, irônico.
- Eu me excedi. Fui desnecessariamente rude e arrogante. Sinto muito por isso.
- Por que eu sinto que essa desculpa de merda é seguida de um "porém"?
- Benício...
- Desembuche.
- Bem, eu sinto muito por como tudo aconteceu. Mas, não. Eu não acho que estava errada quanto ao fato de que nós não temos mais nada. E aquilo que pensavas ser amor era nada mais que culpa por estar acorrentado em mim pelo resto da vida e desespero por saber que eu tornei-me a tua última chance de viveres um amor que não lhe custasses o respeito por si próprio.
- Alguma hora acreditas mesmo no que dizes?
- O quê?
- Inacreditável. - riu - Culpa? Casar contigo foi uma das piores experiências da minha vida e eu estava tão dopado no dia do nosso casamento que eu pouco me lembro daquele dia. Eu não via a hora de me ver livre de tu, nosso casamento e todo caos que acabou levando a ele. E por um dia eu estava livre de tudo isso. De tudo. Escândalos, fofocas, brigas, segredos... E eu senti tua falta. Não parava de pensar no teu cheiro, no teu sorriso, nas tuas manias e pareceu desesperador pensar que, agora que a tinha para mim, estavas mais longe do que nunca. E eu tentei tê-la de volta. A garota cujo beijo me fez vencer uma corrida, a garota que eu levei para ver a cidade de cima, a garota com quem eu planejei um assassinato e por quem eu matei e morreria sem pensar duas vezes. Eu queria ela de volta. E agora ela está aqui, sentada ao pé da minha cama, dizendo que meus sentimentos não são reais enquanto limpa as minhas feridas que consegui após beber demais perguntando-me se ela existiu mesmo ou foi um delírio meu. Então, fale-me sobre culpa, Doutora, enquanto brincas de enfermeira e pune a si própria às custas do meu sofrimento. Que tipo de senso de obrigação a mantém ao meu lado agora?
Vitória procurou palavras para ao menos reagir ao que acabara de escutar, mas nada era capaz de atravessar sua garganta. Desligou-se do mundo por um momento e encarou o nada, engolindo seco para conter o impacto daquele discurso pelo qual ela não esperava. Benício respirou fundo; parte dele arrependia-se de não ter guardado aquilo tudo para si próprio, outra parte não se importava. Um profundo silêncio com ares de abismo instaurou-se entre os dois.
- Bem, eu já acabei. - Informou Vitória, casualmente, como se nada tivesse acontecido.
- Vitória... - Disse Benício, como se quisesse dar continuidade àquela conversa.
- Caso precises, é só chamar. - Interrompeu Vitória, arrumando seus aparatos médicos. - Estarei em meu escritório.
▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪