A dez quilômetros de distância da feiticeira, os castores e as três crianças caminhavam no que lhes parecia o melhor dos sonhos. Havia muito que tinham abandonado os casacos. Tinham deixado até de dizer uns aos outros:
– Um pica-pau! Que lindas campânulas! Que perfume maravilhoso! Como canta bem aquele passarinho!
Caminhavam em silêncio, passando de clareiras inundadas de sol para bosques frescos e verdejantes, voltando para planuras cheias de musgos e olmos gigantescos.
A surpresa tinha sido tão grande para eles como para Edmundo, ao verem o inverno sumir e o bosque mudar, como se o tempo tivesse dado um grande salto. Nem mesmo sabiam ao certo (ao contrário da feiticeira) que era isso mesmo que devia acontecer quando Aslam chegasse a Nárnia. Mas sabiam todos que, por encantamento dela, surgira o inverno sem fim. Quando a primavera mágica começou, todos concluíram que alguma coisa estava falhando, desastrosamente falhando, nos planos da feiticeira. Chegaram a compreender com alegria que a feiticeira já não poderia usar o trenó. Deixaram de andar tão depressa e se deram ao luxo de descansos mais freqüentes e demorados. Também já estavam cansados, exaustos não, mas cansados, meio molengas e distraídos, mas muito calmos por dentro, como acontece quando se chega ao fim de um longo dia ao ar livre. Susana tinha uma pequena bolha no pé.
Tinham deixado de seguir o rio e viraram um pouco para o sul, onde ficava a Mesa de Pedra. Mesmo que não fosse o caminho certo, teria sido impossível continuar pelo vale durante o degelo, porque, com toda a neve que derretia não demorou para que o rio transbordasse e a corrente caudalosa inundasse a vereda por onde seguiam. O sol declinava, a luz ficava mais vermelha, as sombras alongavam-se e as flores já começavam a pensar em dormir.
– Falta pouco – disse o Sr. Castor, guiando-os encosta acima sobre o musgo macio da primavera (tão fofinho sob os pés cansados) para um lugar onde só existiam árvores muito altas e espaçadas. Estavam ofegantes quando chegaram ao topo. Eis o que viram.
Encontravam-se numa grande clareira verde, abraçada por uma floresta que se estendia a perder de vista em todas as direções, menos em frente. Porque aí, longe, no oriente, alguma coisa cintilava e fazia ondas.
– O mar! Puxa! – murmurou Pedro para Susana.
No centro da clareira estava a Mesa de Pedra. Era uma grande pedra cinzenta, bem tosca, sustentada por outras quatro. Parecia muito antiga e estava toda gravada com linhas e figuras esquisitas, caracteres talvez de uma língua desconhecida. Dava uma sensação estranha olhar para ela. Em seguida viram, a um canto, uma barraca armada, um pavilhão magnífico, sobretudo quando os raios do sol incidiam sobre ele. Estava revestido de alguma coisa que parecia seda amarela, cordões vermelhos e cavilhas de marfim; flutuando no alto de uma haste, uma flâmula com um leão rubro, agitada pela brisa do mar. Ouviram música, que vinha da direita. Voltaram-se e viram enfim o que desejavam ver.
Aslam estava em pé, cercado por uma multidão de seres, que o rodeavam em semicírculos. Havia espíritos que moram nas árvores e espíritos dos bosques e fontes (dríades e náiades, como são chamados em nosso mundo). Levavam nas mãos instrumentos de corda. Eram eles que tocavam. Viam-se também quatro grandes centauros: uma das metades lembrava um cavalo grande, enquanto a metade humana parecia um gigante de expressão séria, mas bonita. Havia ainda um unicórnio e um touro com cabeça de homem, um pelicano, uma águia e um cachorro enorme. E, ladeando Aslam, dois leopardos seguravam, um, a coroa, e outro, a insígnia.
Quanto ao próprio Aslam, nem as crianças, nem os castores souberam o que fazer ou dizer ao vê-lo. Quem nunca esteve em Nárnia há de achar que uma coisa não pode ser boa e aterrorizante ao mesmo tempo. Os meninos entenderam logo. Pois, quando tentaram olhar para Aslam de frente, só conseguiram ver de relance a juba de ouro e uns grandes olhos, régios, soleníssimos, esmagadores. Depois, já não tiveram forças para olhar e começaram a tremer como varas verdes.
– Avante! – disse bem baixinho o Sr. Castor.
– Não! – murmurou Pedro. – Vá primeiro.
– Não! Os Filhos de Adão devem ir antes dos bichos – disse o castor, sempre baixinho.
– Susana... – sussurrou Pedro. – Que tal você?
As damas primeiro.
– Não! Você é o mais velho.
Quanto mais demoravam, mais perturbados se sentiam. Pedro acabou compreendendo que lhe cabia ser o primeiro. Levantou a espada em saudação, dizendo apressadamente aos outros:
– Venham! Não tenham medo!
Avançou para o Leão e disse:
– Estamos aqui, Aslam!
– Seja bem-vindo, Pedro, Filho de Adão – respondeu Aslam. – Bem-vindas, Susana e Lúcia, Filhas de Eva. Bem-vindos, Sr. e Sra. Castor.
A voz, profunda e generosa, teve o efeito de um calmante. Ficaram alegres e animados, não mais perturbados por estarem ali sem dizer uma palavra.
– Mas por onde anda o quarto humano? – perguntou Aslam.
– Quis traí-los e aderiu à Feiticeira Branca, Aslam – respondeu o Sr. Castor.
Num impulso, Pedro disse:
– Em parte, foi culpa minha, Aslam. Fiquei zangado com ele...
Aslam nada disse; ficou simplesmente olhando para Pedro com os seus olhos enormes.
– Por favor... Aslam – disse Lúcia –, não podemos fazer algo para salvar Edmundo?
– Faremos o que for preciso. Mas pode ser mais difícil do que você pensa.
O Leão guardou silêncio por certo tempo. Lúcia então reparou que sua expressão (apesar de imponente, régia e calma) também era triste. Mas a tristeza não demorou muito. Ele sacudiu a juba, bateu as patas ("Que terríveis patas seriam" – pensou Lúcia – "se ele não soubesse como torná-las macias!") e disse:
– Enquanto isso, preparem o festim! Senhoras, levem para a barraca real estas Filhas de Eva e tomem conta delas.
Afastadas as meninas, Aslam pousou a pata (apesar de aveludada, muito pesada) em cima do ombro de Pedro:
– Venha, Filho de Adão; vou mostrar-lhe o palácio onde um dia será rei.
Ainda empunhando a espada desembainhada, Pedro acompanhou o Leão ao extremo leste do topo da colina. O Sol se punha por detrás deles: embaixo, estendiam-se a floresta, montanhas, vales e o rio a colear como uma serpente de prata. Além, muito além, ficava o mar; além do mar, o céu, coberto de nuvens avermelhadas pelo pôr-do-sol.
Onde o país de Nárnia se encontra com o mar – na foz do grande rio – brilhava alguma coisa no alto de uma colina. Era um castelo com todas as janelas voltadas para Pedro e para o poente, refletindo a luz do Sol. Parecia uma estrela imensa a descansar na praia.
– Aquilo, ó humano, é Cair Paravel, dos quatro tronos, num dos quais você há de sentar-se como rei. É o primeiro a vê-lo por ser o primogênito; e será o Grande Rei, acima de todos os outros.
Pedro não chegou a falar: um ruído estranho feriu o silêncio. Era como um som de clarim, só que mais impressionante.
– É sua irmã que faz soar a trompa – disse Aslam a Pedro, falando baixinho, tão baixo que parecia um rosnado, se não é falta de respeito falar assim.
Por um momento, Pedro não entendeu o que se passava. Aslam, no entanto, disse, acenando com a pata para as criaturas que avançavam:
– Para trás! Deixem que o príncipe conquiste o seu reino!
Aí compreendeu tudo e partiu correndo para o pavilhão, onde assistiu a um horroroso espetáculo.
As náiades e as dríades fugiam em todas as direções. Pálida como a neve, Lúcia corria para ele com suas perninhas curtas. Susana também corria e tentava subir a uma árvore, perseguida por um monstruoso bicho pardo. A princípio, Pedro julgou que fosse um urso; achou depois que era um pastor-alemão, se bem que fosse grande demais para ser um cachorro. Só então viu que era um lobo, que empinava, rosnava, golpeava com as patas no tronco da árvore, o pêlo todo eriçado. Susana não conseguia passar do segundo galho, com uma perna suspensa, o pé a uns dez centímetros dos dentes ferozes do polícia secreta da Feiticeira Branca. "Por que ela não sobe mais?" – pensava Pedro. – "Pelo menos, por que não se segura com mais firmeza?" Só então reparou que a pobre garota estava quase desmaiando. Se desmaiasse...
Pedro não estava sentindo uma coragem extraordinária. Verdade seja dita, estava até começando a sentir-se mal... Mas isso não o impediu de fazer o que tinha de ser feito. Correu direto ao monstro e fez menção de vibrar-lhe um golpe com a espada. O golpe não chegou ao alvo. Como um relâmpago, a fera voltou-se, os olhos em fogo, boca escancarada, uivando de raiva. Teria despedaçado o menino, se não estivesse tão raivoso. Mas foi assim. Com toda a força, Pedro enterrou a espada entre as patas do lobo, bem no coração. Seguiu-se um momento pavoroso, de tremenda confusão, como num pesadelo. Pedro lutava desesperadamente. O lobo não parecia nem vivo nem morto. Os dentes do animal bateram em sua testa. Era tudo sangue, calor, pêlos e cabelos... Um momento depois, percebeu que o monstro estava morto; desenterrou a espada, endireitou-se, limpou o suor que lhe cobria o rosto e os olhos. Estava exausto o herói!
Susana, daí a pouco, desceu da árvore. Ficaram, ela e Pedro, muito comovidos quando se encontraram. Não posso negar que houve beijos e choradeira, de parte a parte. Mas em Nárnia isso não causa má impressão em ninguém.
– Depressa! – gritou Aslam – Centauros! Águias! Há um outro lobo no bosque. Ali... bem atrás de vocês. Vão atrás dele. Deve estar à procura da dona. E a oportunidade de descobrir a feiticeira e de salvar o quarto Filho de Adão.
Num instante, com um bater de cascos e um tatalar de asas, um grupo de velozes criaturas desapareceu nas trevas.
Pedro, ainda respirando mal, viu que estava junto de Aslam.
– Esqueceu de limpar a espada – disse o Leão.
Verdade. Pedro corou ao ver a lâmina brilhante manchada de sangue e de pêlos do polícia secreta. Esfregou a espada na relva, enxugando-a depois no casaco.
– Dê-me a espada. Ajoelhe-se, Filho de Adão! – disse Aslam.
Tocou-o com a lâmina da espada e disse:
– Levante-se, rei Pedro! E, aconteça o que acontecer, nunca se esqueça de limpar a espada!